Deus vive em sua cidade
DEUS VIVE EM SUA CIDADE
Edebrande Cavalieri
O último tema que o Documento para o caminho da I Assembleia Eclesial nos apresenta refere-se ao desafio da pastoral urbana. Na apresentação dessa questão o texto nos traz uma afirmação forte – Deus vive na cidade - que tem sua origem na experiência pastoral em Buenos Aires do Cardeal Jorge Mario Bergoglio, futuro Papa Francisco, que foi incorporado no Documento de Aparecida em 2007. Em suas palavras: “Deus vive na cidade, e a Igreja vive na cidade. A missão não se opõe a ter de aprender da cidade – de suas culturas e de suas mudanças – ao mesmo tempo que saímos a pregar o evangelho”. A semente cai nesse terreno, interagindo com ele, enfrentando os desafios inerentes a essa terra complexa em diversos sentidos com todo tipo de mudanças, espinhos, pedregulhos, lama, barro, predadores. Mas Deus vive nessa terra, nessa cidade.
A cidade no Brasil é uma realidade nova enquanto distinta do mundo rural advindo dos tempos de colonização e do padroado. Grande parte das pessoas que chegaram nas cidades são oriundas de um mundo em que tudo girava em torno da Igreja. Os sinos representavam o tempo e a ordem do trabalho, do descanso, da morte. Sim! Também a morte era noticiada através de uma batida específica do sino. Essas pessoas, oriundas de um enorme êxodo rural, foram povoando as periferias e bairros das cidades, trazendo a memória dos tempos rurais e conseguindo reorganizar suas vidas a partir daquele horizonte deixado para trás. Em termos mundiais, em 2007, a população urbana superou a rural. Vivemos um mundo globalizado urbano.
O que resta desse mundo na cidade atual? Conforme o Censo do IBGE de 2010, a população do Brasil era constituída por 190.732.694 pessoas, sendo que 84% - mais de 160 milhões – vivendo em zonas urbanas. Podemos até brincar dizendo que até Deus se mudou para a cidade. Uma das reações mais fortes das pessoas que vieram nesse êxodo rural foi a demonização da cidade, considerada como lugar da ausência de Deus. É compreensível, pois esse deslocamento desestruturou as mentes e as vidas das pessoas, quebrou relações e laços fortes que existiam no mundo rural, onde todos eram reconhecidos.
O terreno urbano já não é o mesmo terreno onde os imigrantes construíram suas vidas há tempos atrás. Os filhos da cidade nasceram e cresceram com outros desafios. Muitos sentem saudades dos tempos da vida rural e até tentam reconstruir voltando para onde moravam com mais frequência. Contudo, a força da cidade foi impactando tudo, inclusive aquela realidade rural. As capelinhas construídas nas pequenas propriedades hoje estão abandonadas, fechadas, com todo tipo de mato em volta. Algumas resistem bravamente, mas em sua volta a cultura dominante é urbana. A capoeira cresceu e aquelas comunidades foram evacuadas diante da realidade atrativa das novas terras – a cidade.
E aqui fica uma questão: estamos dispostos a conhecer a cidade que aí está ou continuamos a nos esconder em refúgios tradicionalistas de um passado que não existe mais? A cidade global é a nossa realidade. E Deus vive nesse ambiente? Como ele se mostra? Como ele nos chama?
Na vivência religiosa atual tem crescido formas imaginárias de cidades, numa tentativa de restaurar aquelas que foram objeto desafiador dos antigos judeus como descrevem os textos bíblicos. Até Templo de Salomão foi construído nessa epopeia restauradora. A nova Jerusalém não é a reprodução daquela cidade destruída pelos romanos no ano 70 d.C. Eis a questão mais desafiadora na pastoral urbana. Muitos tentam se agarrar à tradição por medo ou por insegurança. Mas no horizonte temos as periferias geográficas e existenciais a serem redescobertas com suas contradições.
O Papa Francisco nos diz que sempre reza por sua cidade, Buenos Aires, e por ela tem grande carinho e grande familiaridade. Nesse caminho ele nos diz que isso ajuda a encarnar a universalidade da fé que abraça todas as pessoas de toda cidade. É preciso ser cidadão da cidade com sua complexidade que vincula raça, história e cultura, não mais homogêneos como era no mundo rural.
Contudo, nem todos são cidadãos na cidade atual. Há muitíssimos “não cidadãos”, “cidadãos pela metade” e “sobrantes”, pois “não gozam dos plenos direitos como os excluídos, os estrangeiros, as pessoas sem documentos, os jovens sem escolaridade, os anciãos e os enfermos sem plano de saúde”.
Nos últimos anos, entre nós brotou um movimento de cristandade de cunho pentecostal que, através do poder político, acredita trazer a salvação e a libertação da cidade de todos os seus males. Muitos acreditam que isso resulta das tensões e medos ocasionados pela cidade, num sentimento de impotência diante dos novos horizontes culturais. Em Aparecida já se constatava que estamos diante de uma mudança de paradigma e o cristão não mais se encontra na linha de frente da produção cultural, mas recebe todo tipo de impacto e sofrimentos da cultura urbana. Acreditamos que a cristandade nada mais é que uma ilusão que será abortada tão logo se alterem as forças do poder político.
O cristianismo nasceu como experiência religiosa em contexto urbano. Jerusalém, conforme Joaquim Jeremias, era uma cidade que em tempos normais contava entre 25 a 30 mil habitantes dentro e fora dos muros. Por ocasião das Festas Judaicas sua população chegava a casa de 125 mil pessoas. A cidade de Roma no tempo de Jesus tinha em torno de um milhão de habitantes. A cidade de Antioquia dos tempos de Santo Inácio chegava a 300 mil pessoas. A região da Galileia onde nasceu Jesus e pertencia ao império romano tinha 200 mil habitantes. A cidade de Corinto da época de Paulo possuía em torno de 50 mil pessoas.
Muitas vezes romantizamos as cidades antigas como se fossem cidades celestiais. Contudo, quando nos debruçamos com estudos mais aprofundados sobre as condições de vida urbana nos tempos em que Jesus e os Apóstolos viveram, podemos perceber os enormes desafios para as pessoas. As cidades eram lugares muito insalubres, sem nenhum tipo de saneamento. Havia banheiros públicos, contudo o mais comum era o uso dos famosos penicos, depois esvaziados pelas janelas das casas. Não havia nenhum tipo de segurança pública, e isso impedia as pessoas de saírem à noite devido à violência. As casas eram construídas de maneira apinhada, em que apenas uma parede separava uma casa da outra, sem ventilação entre elas. Era comum cercar a cidade com muralhas ou muros, como forma de proteção, porém do lado de fora dos muros formavam-se as grandes periferias urbanas com escravos, estrangeiros, servos. Dentro dos muros moravam os cidadãos. Por outro lado, a vida rural estava sujeita a todo tipo de intempérie e desgraças. Os salteadores (ladrões) aproveitavam o pouco que restava dos pobres agricultores e pastores.
A cidade globalizada dos tempos atuais é também muito religiosa, porém nem sempre as referências religiosas e cultuais se remetem à vida cristã. Há um discurso religioso muito arraigado entre as pessoas, formando outra espécie de cultura urbana, que somente é cristão de maneira tangencial. Não se trata de uma expressão genuinamente evangélica, cristã. Muitas vezes, usa-se a própria Bíblia, recuperando experiências do Antigo Testamento, mas carentes de uma fé cristã genuína.
O grande desafio para a Igreja da América Latina e do Caribe é redescobrir a presença de Deus na cidade, torná-lo horizonte de vida. Um Deus que só é usado como discurso para dissimular posturas farisaicas e hipócritas não serve à cidade. Ao mesmo tempo, em termos pastorais, penso que não é um bom caminho a proposição de modalidades e estruturas de vida da Igreja que pertenceram a outros tempos. Às vezes, temos a impressão que a Igreja é chamada para uma batalha, uma luta, uma guerra. Esse foi o modelo das Cruzadas. O desafio para a Igreja atual não está dentro dos muros da cidade, mas nas periferias, expressão de uma sociedade que abandonou uma parte de si mesma negando os direitos mais rudimentares. Se a tranquilidade de dentro dos muros está ameaçada é porque a sobrevivência dos que sobram nas cidades há muito foi jogada ao “deus dará”, entregue à própria sorte.
A Igreja hoje é convocada na cidade para um movimento de conversão para fora dos muros. Sem isso a cidade poderá falar muito de Deus, no entanto Ele foi expulso, Ele foi assassinado. Ele está vivendo nos barracos miseráveis, naqueles bairros onde a violência é a céu aberto. Um Deus que escapa das periferias geográficas, sociais e existenciais não vive na cidade. É, sobretudo, nas periferias e suas contradições que se deve forjar o nascimento de um novo modelo de espiritualidade e evangelização. O Papa Francisco aponta a direção de uma pastoral urbana a partir de uma Igreja em estado permanente de saída missionária, superando uma pastoral da conservação.
Edebrande Cavalieri
Enviado por Edebrande Cavalieri em 21/08/2021