Gamela literária
Nos tempos da vida de roça com poucas alternativas para recipientes domésticos,
a madeira tornava-se elemento fundamental para uso tanto com a alimentação dos animais nos famosos coxos, como para a própria família.
Um desses objetos era a gamela,
feita com o tronco de madeira de lei,
bem resistente,
que servia para a salmoura para salgar carnes em geral.
Durante um determinado número de dias,
as carnes, especialmente de porco e boi,
ali ficavam sob sal grosso,
saindo depois para a secagem no sol,
geralmente em cercas de arame farpado.
Também os peixes que eram pescados no Rio Doce por ocasião das enchentes
e desciam o rio em grande quantidade ficando aprisionados nas lagoas às margens,
eram limpos e colocados na salmoura
e depois secos tornando-se uma espécie de bacalhau para os pobres.
Hoje tem-se o uso bem elevado desse utensílio como objeto decorativo,
aproveitando bastante o bambu.
E pensei numa metáfora – gamela literária!
Sempre sinto necessidade de deixar cada texto que escrevo à espera para ser publicado.
Seria um tempo para amadurecimento.
Tempo de sal moura.
Tempo para ser curtido
e depois ser disponibilizado para ser consumido como alimento.
Um texto é um alimento com inumeráveis benefícios
para os mais diversos tipos humanos,
mesmo os analfabetos podem usufruir de um texto literário
na medida em que seja transformado em áudio.
Os povos ágrafos que presavam fortemente a tradição oral
construíram tantos textos nos mais diversos contextos.
E como estavam numa salmoura da oralidade,
os textos podiam ficar cada vez mais curtidos,
mais saborosos,
mais ricos,
mesmo que fossem de imaginação.
Como não saborear a história de Sansão e Dalila?
Assim em tempos de virtualidade muitos textos acabam ficando na salmoura,
sendo experimentados por provadores famintos ou curiosos,
que registram quase sempre suas pegadas na degustação.
Alguns degustadores acabam manifestando seu prazer ou desprazer pelos sabores experimentados.
Como seria se, ao invés de espaços líquidos que escorrem levando os sabores tivéssemos sempre uma gamela literária onde cada leitor pudesse experimentar os alimentos ali conservados!
As redes sociais tornaram-se em grande parte utensílios que guardam por pouco tempo posts apressados, pouco ou nada pensados, muitos até servindo como palavras aterrorizantes e mortíferas.
Em vez de gamelas,
as palavras ganham força na impetuosidade
e gravidade da ofensa,
com mira certeira para deixar o adversário agonizando por bom tempo.
As gamelas literárias vão desaparecendo deixando espaços para sujeira
e podridão de palavras que dividem e matam.
O lugar mais adequado para deixar as palavras descansando por um determinado tempo ou mesmo para sempre vai diminuindo sendo desvalorizado pela grande maioria de uma tropa que usa os dedos apenas para o gatilho e não para dedilhar uma melodia ou registrar palavras que poderiam produzir novos sabores, novos temperos, para todo tipo de paladar.
Por ocaso, descobri essa gamela literária que está guardando nossos textos,
nossas vozes,
nossos temperos,
nossas palavras sob as mais diversas formas.
Gratuitamente ou não, a oportunidade apresenta-se para todos.
A palavra é o meio mais democrático à disposição dos homens.
Mesmos aqueles que são privados da palavra sonora, podem usufruir de palavras gestual ou auditiva.
O recanto tornou-se encanto para a custódia de nossas palavras,
sejam quais forem,
como verdadeira gamela que se dispõe como alimento dos homens.
Então se fez o recanto da cultura,
o recanto das letras
e assim seja para o prazer de todos nós.
Degustem as palavras que vou depositando nessa gamela daqui para frente!
Podem retornar com palavras também para dizer se o texto ficou saboroso,
se estava bom de sal,
ou se faltava ainda algum tempero especial.
Bom apetite!