Edebrande Cavalieri
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O que é isso - "marxismo cultural"?

O ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, declarou ser contra a ideologia globalista afirmando que “o globalismo é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural, que é um sistema anti-humano e anti-cristão. Outras pessoas de referência no mundo político tem afirmado que a UNESCO, a OCDE, o Conselho da Europa, a Comissão de Bruxelas e outros organismos internacionais transformaram as escolas do mundo todo em instrumento de uma revolução cultural e ética destinada a modificar os valores, as atitudes e os comportamentos das pessoas no mundo inteiro. Afirmam ainda que a base desta revolução é a “filosofia esquerdista e marxista”. Esses personagens que estão disseminando esta ideia vão ainda mais longe dizendo que estão sendo usadas diversas técnicas de manipulação psicológica, com lavagem cerebral, provocando uma grande mudança nas cabeças dos alunos. Diante deste cenário, cabe-nos verificar em que se sustenta ou se baseia este conjunto ideológico que dizem ameaçar o mundo todo. Fica de início a pergunta: em que se trata esse “marxismo cultural”?

Esta pergunta é importante, pois no que se conhece aos cursos superiores do Brasil, o ensino sobre Marx é praticamente nulo. Tem cursos de filosofia que não há sequer uma disciplina oferecida com este pensador. E nos cursos de economia também não é muito diferente. Hoje nos cursos superiores são predominantes os estudos liberais. Como poderíamos considerar a globalização econômica nos parâmetros do marxismo? Está aí uma questão que precisa ser esclarecida, o que não é nosso objetivo aqui. Estamos nos propondo verificar como surgiu esta ideia de “marxismo cultural”.

Trata-se de uma tese conspiratória desenvolvida nos Estados Unidos nas décadas de 1980 e 1990 por Willian Bind e Pat Buchanan e retransmitida para o Brasil a partir de 2000 por Olavo Carvalho que possui hoje mais de 500 mil seguidores. Os dois autores americanos se apoiam na filosofia de Antonio Gramsci e Georg Lukács, marxistas, que se perguntavam por que a revolução socialista prevista por Lenin não estava avançando pelo mundo. Os dois filósofos marxistas explicam que a revolução comunista não aconteceu porque o mundo ocidental está dominado por uma superestrutura ideológica representada por escolas, igrejas, imprensa e universidades, responsáveis pela influência na cultura dominante. Então, segundo os dois marxistas, a revolução comunista somente iria acontecer na medida em que se alterasse esta superestrutura ideológica, provocando uma implosão das ideias veiculadas pelas instituições. Posteriormente, as ideias de Gramsci e Luckács foram desenvolvidas pela Escola de Frankfurt com Marcuse, Horkheimer, Benjamin, Habermas e Adorno; a Escola também passou a incluir as ideias da psicanálise de Freud e Lacan, mostrando que há um entrelaçamento entre a libertação psíquica e atitudes culturais para o desenvolvimento da consciência revolucionária.

Neste contexto, para os autores americanos citados acima, a obra de Hebert Marcuse ataca frontalmente a ordem sexual enraizada no ocidente, patriarcal e heteronormativa. Segundo alguns autores, nasce aqui a prática da promiscuidade sexual e do hedonismo. Os antiglobalistas acusam Marcuse como destruidor da família tradicional. Assim, segundo esses autores, criou-se um “marxismo cultural” que impregnou todas as instituições americanas, os meios de pensamento, as universidades e os estúdios de Hollywood. Segundo eles, a nova esquerda desenvolve o projeto de destruição da cultura ocidental, fomentando o feminismo, o “gayzismo”, o ambientalismo, o multiculturalismo, e mudanças da moral tradicional. Nasce assim a “ideologia de gênero” tão discutida e diabolizada por esta onda ideológica. Segundo eles, a nova esquerda não está mais focando os meios de produção para desenvolver a revolução comunista, mas a cultura e o pensamento. A própria Igreja Católica, segundo eles, também aderiu a este movimento da nova esquerda. Assim, entende-se no Brasil a acusação de que a própria CNBB seja comunista, como eles alegam.

As ideias que alimentaram a extrema direita americana nas décadas de 80 e 90 chegaram ao Brasil recentemente. De maneira muito atrasada esta teoria passa a ser divulgada no Brasil por algumas pessoas, alimentando ideologicamente movimentos políticos e organizações diversas. E para completar a teoria conspiratória dos americanos, Donald Trumpt declara na ONU o “fim da ideologia globalista” e defende a “doutrina do patriotismo”. Isso permite-nos entender como a sua eleição modifica o tratamento dado aos imigrantes e o estabelecimento de muros nas fronteiras americanas. Os divulgadores da teoria conspiratória no Brasil alegam que o globalismo não é uma questão econômica, mas uma ideologia que objetiva substituir as culturas tradicionais pela moral laica, cosmopolita e esquerdista. Para eles, a China é um dos focos de difusão da ideologia globalista. Vale aqui perguntar como o Brasil vai continuar a manter a forte relação comercial que mantém com este país asiático? E o que vimos nos últimos tempos, especialmente durante a pandemia, é o confronto com a China de alguns personagens como o próprio ex-ministro das relações exteriores prejudicando enormemente as relações comerciais.

No final do milênio, algumas pessoas como Olavo de Carvalho encabeçam uma cruzada contra o que se convencionou chamar de esquerda, formadora de opinião pública, que teria aparelhado universidades e meios de comunicação para instaurar a mentalidade comunista. Carvalho escreve uma carta pedindo ajuda a seus seguidores para publicar um livro que serviria para conscientizar a elite americana dos riscos de apoiar organizações latino-americanas de esquerda. Para ele, a democracia não é alimentar a liberdade, mas dar a cada um a possibilidade de lutar pela liberdade. Tem assim sentido a política do atual governo brasileiro de liberar a compra de armas, incluindo fuzis, para a defesa da liberdade. Será eficaz esse caminho pela liberdade? Na história por diversas vezes esse caminho resultou em profundas rupturas, e muitas vezes, bem sangrentas.

O sucesso de Olavo de Carvalho, segundo a professora Esther Solano, da UNIFESP, se deve ao fenômeno das redes sociais, com uma comunicação fácil, rápida, polêmica e combativa. "Ele sabe se comunicar com base em frases polêmicas, conteúdos curtos, mensagens fáceis e ataques. É a forma comunicativa do best seller, daquele palestrante que tem um conteúdo muito simples e mastigado. Uma coisa fácil, polêmica e que faz sucesso."

Assim se cria uma comunidade de afeto ao redor dele, que é política e intelectual, que transita nas diferentes esferas da realidade cultural. As pessoas vão se “convertendo” a este ideário voluntariamente de maneira espantosa. A forma adotada implica quase sempre uma crença naquilo que afirma como verdade. E seus seguidores vão repetindo estas ideias-crenças, com base predominantemente intuitiva, provenientes de seus escritos e de seus cursos. Este fenômeno transcende a esfera lógica e intelectual e se envereda na esfera das crenças e dos dogmas, objeto da crença. Tudo passa a ser verdade inabalável. A teoria da conspiração cultural que se baseia nas premissas marxistas vai tomando ares de verdade, de certeza e objeto de defesa. Não entra no jogo da discussão, pois não possui estrutura lógica e científica para tal. Filosofia e ciência, para este grupo, passaram a ser parte integrante do “marxismo cultural”. Daí o crescimento do negacionismo, tão perigoso em tempos de pandemia.

Forma-se assim uma estrutura de comunidade com seguidores; os defensores destas ideias passaram a assumir posturas de verdadeiros soldados cruzados. Uma aluna minha me disse que da filosofia bastava para ela as ideias desse ideólogo. E ela mesma passa a condenar veementemente qualquer outro pensador da longa tradição filosófica. Este autor é hoje a figura brasileira mais emblemática e tornou-se um conselheiro dos novos dirigentes políticos. Eis, em suas palavras, a orientação política dada por ele para cada pessoa que o segue:
“Mais importante do que tirar a Dilma da presidência é expulsar os comunistas da sua escola, da sua igreja, da sua sociedade de bairro, do seu clube. Isso não depende de grandes mobilizações, depende só da coragem e iniciativa de cada um. Isso não é nem política; é dever pessoal. Denuncie cada filho da p...., atire na cara dele, em público, todo o mal que ele representa e personifica. Recuse-lhe amizade, tolerância ou respeito, mesmo em pensamento. Esses canalhas vivem da generosidade das suas vítimas”.

A condução deste processo ideológico encabeçado por este grupo influenciado pela extrema direita norteamericana e os vários acontecimentos vem se alastrando de forma mais radical a partir da queda da Presidente Dilma e das últimas eleições para presidente. Assim, entendem-se as diversas reações, quase sempre fortes e radicais, contra a presença de pensadores estrangeiros no Brasil, como aconteceu com a filósofa Judith Bluter. Praticamente são escorraçados. Diversos eventos programados nas instituições acadêmicas são cancelados diante da agressividade de alguns grupos contrários.

A academia moderna que se estruturou no ideário da Revolução Francesa que defende a liberdade de pensamento, de consciência e de religião, que defende sempre a existência de um ambiente plural, multicultural, passa a sentir a restrição e quase eliminação desta liberdade. Fica distante a posição de Voltaire que defendia o direito de cada pessoa dizer algo, mesmo que ele não concordasse absolutamente com nada do que fora dito.

Crescem com esta mesma postura ideológica as práticas de intolerância religiosa, cultural, social, sexual. A religião pregada em diversas Igrejas cristãs serviu como base espiritual para este discurso ideológico de combate ao “marxismo cultural”. Durante as eleições recentes, era comum ver cristãos proferindo altos discursos contra o comunismo. Bispos, padres e pastores, ingenuamente passaram a apoiar esse grupo acreditando nos dividendos de aumento de seus fiéis.

Em nosso entendimento, a pauta moral é um artifício dissimulador de outros interesses. O que está em jogo não é uma purificação religiosa da fé, mas a implantação de uma ruptura com o desenvolvimento cultural ocidental. Este grupo não está preocupado com as questões morais, mas fazem da moral o semblante para criar aderência social em seus projetos. Não está em pauta colocar os princípios evangélicos na ordem do dia da política nacional, mas expurgar ou esconder tudo o que na Bíblia serviria para alimentar o que eles chamam de cultura marxista. Não é de se admirar que eles consideram o Papa Francisco um comunista.

Por fim, há que se considerar que a produção de fake News teve como objetivo principal a destruição do que representa a cultura ocidental que eles chamam de marxismo ou filosofia esquerdista. Cada notícia falsa mais ainda alimenta a crença das pessoas na existência do demônio que ronda as portas das famílias brasileiras. Por isso, o slogan de “Deus acima de todos”. Para este grupo, o marxismo cultural é o caminho do ateísmo nos dias atuais. Esquecem que a postura ateísta é parte integrante da cultura humana, pois se refere à dimensão da crença, que é de cunho pessoal. Estas pessoas entendem que as universidades e meios de comunicação ficaram repletos de ateus, de esquerdistas, que projetam dominar o mundo.

A própria prova do ENEM passa a ser objeto de questionamento e torna-se pauta da ordem governamental, com a proposta de controle das questões no próximo exame. Vive-se um momento de profunda suspeita sobre tudo o que expressa algo crítico, algo progressista. A política assume novamente a face sombria dos mecanismos medievais da crença e da cruzada. O cristianismo propalado pelas Igrejas que apoiam este movimento se assemelha à cristandade medieval. Segundo suas lideranças, não há incompatibilidade entre a cruz e a espada, entre a guerra e a fé. Pois, recusar amizade, respeito e tolerância está bem mais perto da perspectiva de cruzada que do amor cristão.
Edebrande Cavalieri
Enviado por Edebrande Cavalieri em 27/08/2021
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