A escolha
No dia de hoje, 15 de outubro, é praxe homenagear os professores com os mais diversos modos. Durante minha vida de professor, iniciada em 1977, logo após a colação de grau do curso de licenciatura em filosofia, também tive a oportunidade de receber tantas homenagens. São quarenta e quatro anos passados após aquele momento chave de nossa existência em que se toma uma decisão: quero ser professor e agora preciso procurar escolas para ministrar aulas.
Naquele momento, de tempos sombrios para a liberdade de cátedra, quando tantos professores foram perseguidos e outros tantos foram calados, tomar a decisão de ser professor era assumir riscos. Ainda mais tendo como origem a formação em filosofia. Lembro como essa faculdade era vigiada em todos os lugares, ou simplesmente fechada. Em cada sala de aula havia algum aluno estranho ao meio filosófico. Parecia com aqueles funcionários medievais que trabalhavam para o imperador Carlos Magno, conhecidos como “os olhos e os ouvidos do Rei”.
Ser formado em filosofia naqueles anos tinha ainda outro obstáculo. O ensino de segundo grau (na época) não previa essa disciplina em seu currículo. Ou seja, buscar aulas de filosofia pelos colégios era uma luta inglória. Por favor, nos deram a possibilidade de ensinar estudos sociais e psicologia. Era pegar ou largar. Só tinha isso. Então nos davam disciplinas como Educação Moral e Cívica, Organização Social e Política do Brasil, raramente História. E na área de psicologia nos restava a disciplina Psicologia da Administração. Tempos de tanta penúria intelectual, os filósofos eram assim submetidos a ensinar conteúdos que convinham ao regime político. Ao mesmo tempo, era preciso preencher uma ficha de filiação partidária.
Assim se deu a minha escolha como professor naquele longínquo ano de 1977. Tive momentos difíceis e outros tanto de medo. Era preciso muito coragem. Era preciso muita sabedoria. Era preciso fazer como o Chico Buarque fazia com as letras de música, driblando a censura. A verdade poderia ser dita de diversas formas. Era preciso muito inteligência para encontrar a forma mais adequada para se ensinar.
Lembro de um estágio extracurricular que fiz chamado “mutirão”, uma espécie de curso de extensão dado às comunidades das periferias, ensinando a importância de se trabalhar juntos, um ajudando o outro. Mostrávamos como o mutirão podia resolver o problema da habitação, da saúde, da educação, da vida social com suas festas e exposições de cultura. O mutirão era o caminho que servia para tantas coisas. Nada de reza naqueles bairros. Nada de Igreja. Sabíamos que era preciso unir as pessoas, jamais dividi-las. O mutirão era um caminho integral que podia ser usado em benefício prático, de vida, de cada pessoa. Juntas as pessoas vão escolhendo sua vida, sem guia, sem guru.
A inteligência no magistério requer muito mais que o domínio de conteúdo. Muitos se equivocam achando que uma “escola sem partido” é o ideal para o conhecimento. O mutirão não configurava partido nenhum. Por isso, não queríamos reza ou Igreja, ou partido. Aprendemos nos bancos dos estudos filosóficos que era preciso astúcia e sabedoria.
E assim comecei meu caminho de professor nos colégios de ensino fundamental e médio. E como se tratava de estudos sociais, com aquelas disciplinas acima mencionadas, eu buscava os motivos para atender aqueles conteúdos. E logo em Vitória explodiu a vida pobre, com aumento das periferias, e crescimento dos grandes projetos industriais. Como discutir essa contradição?
Um jornalista, Amilton de Almeida, teve a ideia brilhante de produzir um documentário sobre a nova realidade urbana, retratando o crescimento da pobreza em torno da coleta de lixo decorrente do descarregamento dos caminhões de limpeza urbana no Bairro São Pedro. Aquele bairro via crescer a mistura de gente e urubus, cachorros e crianças. Era em torno do lixão que tudo se aglomerava. Todo tipo de pobreza para ali parecia ser descarregado pelos caminhões de lixo. Aquilo era muito mais que um lixão de produtos descartados. Era na verdade o lugar para o encontro da sobrevivência daqueles animais, pessoas.
É lançado o documentário “Lugar de toda pobreza” feito pelo jornalista e logo encontrei nesse trabalho um campo enorme para os estudos em sala de aula. O vídeo cassete estava iniciando sua trajetória social e a escola havia montado uma sala exclusivamente para aulas com vídeo. Era o recurso top e eu estava aí aproveitando aquele espaço para uso com meus alunos. Então nas minhas aulas os alunos se deslocavam para aquela sala especial onde havia vídeo cassete e ali assistíamos o documento “Lugar de toda pobreza”. A fita era usada ao longo de um mês de aula. Quantas discussões! Para os alunos o deslocamento era expressão da liberdade que lhes era dada. Às vezes fico impressionado como nossas escolas fixam seus alunos nas cadeiras de um espaço reduzido chamado de classe.
Se não bastasse essa motivação, o Chico Buarque me fazia mais mestre ainda e tomando um violão e fazia uma turma inteira cantar “Construção”. E depois partíamos para refletir sobre aquela letra. Assim eu trazia “Mulheres de Atenas”, “Cálice”, “Apesar de você”, “Vai passar”, e tantas outras. Meus colegas de outras disciplinas ficavam invejando minhas aulas e os alunos querendo mais aulas dessas disciplinas. Quanta ironia! O caminho da consciência segue diversas vias. Não precisa ser pesado como muitas vezes é apresentado em determinados encontros.
A escolha não era um ponto no início da carreira, mas algo que era feito a cada dia, em cada turma de alunos. A escolha é esse mistério que nos toma o tempo todo. Não sabemos onde vai dar, mas apenas que é preciso tomar uma decisão. Não parar ao lado. Não ficar à margem. Não morrer asfixiado pelo medo e falta de coragem. A escolha nos torna mais dignos ainda da carreira que buscamos, e no caso de hoje, a escolha para ser professor nos dias atuais representa talvez o maior desafio dos nossos jovens. Às vezes, tenho dúvida se estão preparados para fazer escolha. Tenho a impressão que a grande maioria segue o instinto animal, de viver sem razão. São contratados em processos letivos sem nenhuma garantia, trabalhando precariamente, sabendo que ao terminar aquele contrato (que pode ser rescindido a qualquer momento pelo empregador) poucas expectativas alimentam em relação a essa escolha. Parece muitas vezes uma falta de outra coisa para fazer. Costumo dizer que esse trabalho se assemelha a um verdadeiro “bico”, como fazemos ao chamar um profissional para pequenos trabalhos em nossas casas.
A todos os professores presto minhas homenagens mais verdadeiras, especialmente aqueles que fizeram a escolha pelo magistério que educa, que forma, que abre caminhos, que desvenda horizontes, que nos torna mais homens e menos animais. Talvez as escolhas hoje dependam ainda mais do trabalho em mutirão. Minha homenagem mais profunda ainda a todos os professores que fazem parte desse espaço "Recanto das Letras", que me alegra cada vez mais por encontrar nele um verdadeiro "recanto da sabedoria".