Edebrande Cavalieri
A escrita é a salvação do espírito, da alma e do corpo.
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O nascimento

Como a cena do meu nascimento esteve sempre presente na lembrança de minha mãe, ela nunca cansava de contar. Aliás, contar aos filhos como cada um nasceu é algo tão marcante não apenas para as mães, mas para os próprios filhos. Parece que perdemos muito desse momento em que as grávidas são retiradas de casa e levadas para maternidades, sendo conduzidas por equipe médica, geralmente distante até do pai da criança.

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Mas eu tive o privilégio de nascer em casa e quem me pegou nos braços ao sair do útero materno foi minha avó paterna, parteira já consagrada nas redondezas de Valada de Cavalinho (Espírito Santo). Para quem não sabe, esse é o nome do lugar onde nasci. Terras recebidas pelos colonos italianos que para lá foram levados e iniciaram uma nova vida, agora distante das terras do Vêneto (Itália).

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Como não havia escolas, foi o meu avô paterno (Américo) quem se responsabilizou para ensinar a ler e escrever aos filhos daqueles colonos que sabiam mais o dialeto que o próprio português. Pelo trabalho docente, meu avô nada ganhava e realizava às noites depois da janta. Tantos dormiam pois nem a luz da lamparina (feita com latinha e querosene que embebia o pavio) ajudava, fazendo arder os olhos. Mas meu avô sempre animado. Não sei se pela arte de ensinar ou pelas cachaças que tomava antes do jantar. Ele era um grande líder intelectual e religioso.

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A casa onde morava era um verdadeiro casarão sustentada com esteios de guaribu preto (também o amarelo era usado), que era uma madeira incólume aos cupins. Não havia cimento para levantar colunas de sustentação. Era madeira que segurava toda a casa. Assim foram criando os imigrantes italianos seus mecanismos de sustentação, tanto das casas como da vida social.

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A casa onde nasci era rodeada de flores. Como perfumavam todo o ambiente! Tinha uma muito conhecida como murta que exalava perfume que era sentido à distância. E as rosas? Não serviam apenas para embelezar, mas tinha uma qualidade, a rosa branca, que possuía qualidades medicinais. Sempre se guardava suas pétalas, que mesmo secas conservavam suas propriedades. O nascimento dava-se em meio a uma realidade rude, mas bela e perfumada.

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Não bastasse tanta lindeza, as frutas completavam o cenário em volta da casa. Esta estava cercada para que os animais de grande porte não destruíssem as plantas de flores e de frutas. Tanta laranja eu logo que cresci um pouco pude chupar, tirando do pé e descascando com as unhas mesmos. Nada de faca ou canivete. Era nos dentes ou nas unhas. E assim a vida ia se tornando muito saborosa.

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Para completar tanta riqueza que nada valia ao mercado, aquele rio tranquilo em tempos de secas, com águas cristalinas onde os peixinhos eram vistos aos montes, mas durante as cheias das chuvas era ameaçador. Como foi triste ver a ponte por onde passávamos sendo levada embora pela correnteza. Quantos rios e córregos naquela região! Parecia que em cada vale brotava uma correnteza. E brotava e crescia rapidamente tornando-se rio.

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Nesse rio onde nasci passei muitos anos de minha infância, tomando banho, pescando, brincando, pulando da pinguela e mergulhando como se o mundo era tudo isso. Não precisava de mais nada. Eu tinha tudo aí. Como assim? Não me fazia falta de um mundo que nem sonhava. Então tinha tudo. Nascer num lugar e poder viver aí muitos momentos fortalece a alma e o espírito. Parece que ali estão raízes que se aprofundaram.

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Contudo, não era isso o que minha mãe me contava ao longo dos anos. Nunca esboçava qualquer menção a esse lugar. Não sei por que motivos. Penso hoje em algumas hipóteses. Parece-me que a mais provável é representada pelo meu nascimento mesmo. Esse era o fato extraordinário. Isso ela nunca esquecia. E falava para todo mundo de maneira muito orgulhosa.

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Alguns irão dizer que todas as mães são orgulhosas da prole. Mas a minha mãe tinha mais razões para isso. Meu pai era o mais velho de nove irmãos, e o primeiro a se casar. Então o nascimento do primeiro neto ou neta era algo muito esperado em toda a vizinhança de imigrantes, e não apenas na família. Enfim, logo minha mãe engravidou. Que festa! A barriga começando a dar sinais de desenvolvimento. Sem médico que acompanhasse, sem remédios, sem assistência.

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O único recurso eram as rezas, as devoções. E nesse ambiente de imigrante a oração tem um grau de obrigação e dever. Todos que saíam lá do Vêneto recebiam a Bíblia, o Terço e o manual de oração. Meu avô junto com outros descendentes tratou de logo construir a Capelinha dedicada a São Jorge, aquele que montado num animal consegue matar o dragão. Imagem forte que marcou minha infância aos domingos quando íamos rezar. Parece que tal devoção estivesse bem adequada àquela realidade. Eles tinham que vencer dragões todos os dias.

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E minha mãe não resistiu ao dragão da falta de apoio médico que a acompanhasse. Poucos meses, e um feto de menina era posto numa caixinha de sapato e levado ao cemitério. Quanta tristeza! Logo as narrativas dizendo que ela não podia ter filhos. Mas o que fazer? Ela tinha se cuidado. Não montava em cavalos e nem carregava pesos. Um sentimento de culpa indecifrável e indefinível. Por que não manteve a gravidez? Era necessário recorrer ao único hospital (a Igreja e suas devoções). São Jorge acabou recebendo o apoio de Nossa Senhora da Saúde. Quem sabe a próxima gravidez não prospere!?

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Enfim veio a segunda gravidez. Mais cuidados! Mais orações! Mais promessas! Pobre do meu pai. Sua companheira tinha que ser preservada nove meses para que enfim o primeiro neto de meus avós aparecesse. Mas esse também não vingou. Era um menino que também foi posto numa caixinha de sapato e levado para o cemitério. Parecia uma sina.

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Era um cenário muito duro e cruel. Ainda mais o peso da moral cristã, pois já eram duas vidas que morriam sem ser batizadas. Mas nem puderam nascer para isso? Os teólogos ficam tentando justificar e explicar, mas o sentimento materno desconhece as razões teológicas. Foram duas vidas enterradas. Esse era o sentimento daquela mãe, que ainda não tinha sido mãe. Ou poderia ser considerada mãe? Estão vendo como os teólogos e filósofos pensam?

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Minha mãe sempre contava isso tudo. E dizia de sua expectativa pela terceira experiência de gravidez. Como ela esperava! Como ansiava ter um filho. Parece que o sentimento do pobre vê o filho como uma bênção divina, uma graça. Então mais orações, mais promessas. Mais santos no caminho devocional. Nunca é demais.

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Pobre nunca desanima. Nunca entrega os pontos. Sempre diz que tem fé e que vai conseguir. Assim os imigrantes e colonos italianos enfrentavam os dragões como se fossem tantos santos Jorges. Enfim, a terceira gravidez, tão esperada, mas também tão repleta de medos e desconfianças. Será que desta vez chega ao final dos noves meses?

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Muitas vezes me pus a pensar como ela viveu e vivenciou esse tempo todo, ameaçador (pois poderia ser mais uma caixa de sapato), mas sempre acreditando no milagre. E quando todos achavam que essa gravidez também não chegaria ao fim, aquela mulher simples, analfabeta, pobre, foi se fortalecendo cada dia, cuidando da alimentação, sentindo a vida pulsando dentro de seu ventre. E ela se alegrando no silêncio da expectativa. Sem alarde! Só meu pai acompanhando contido e confiante.

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O dia chegou com as dores que não eram nada diante daquele momento. Com todo cuidado e carinho, minha avó foi ajudando e, aos poucos, um menino ia aparecendo, cada vez maior. O primeiro choro deve ter sido um momento muito forte na vida daquela mãe. O filho tão esperado tinha chegado e estava vivo, chorando com fome, mas chorando muito. Acho que naquele momento eu queria dizer para ela que estava vivo e por isso chorava forte. Ela sempre me disse que meu choro era muito alto. Quando ela olhou, assim sempre me contou, viu que eu era lindo. Eu era o bonitão dela!

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Como ela já se foi, eu não poderia deixar morrer essa história tão forte, tão rica e tão sagrada.

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Edebrande Cavalieri
Enviado por Edebrande Cavalieri em 18/10/2021
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