O objetivo desse pequeno artigo é apresentar algumas questões que nos parecem desafiadoras para as pessoas em geral e especialmente para cristãos católicos e suas lideranças que atuam no trabalho pastoral. Assim como a Reforma Protestante nos tempos de Martinho Lutero encontrou um ambiente muito favorável para sua expansão pois estava em avançando a invenção da imprensa, hoje com a revolução tecnológica digital e o advento das redes sociais estamos num mundo imprevisível, conturbado e desafiador. As eleições de 2022 no Brasil mostraram de maneira bem concreta como num piscar de olhos qualquer informação, verdadeira ou falsa, pode chegar aos quatro cantos do pais. O poder de mobilização do mundo digital é espantoso.
A internet foi desenvolvida no auge da Guerra Fria (iniciada após a II Guerra Mundial e terminada em 1991 com a extinção da URSS) que envolvia as duas superpotências mundiais, União Soviética e Estados Unidos. Cada uma dessas potências temia um ataque militar às suas bases, capaz de tornar públicas informações sigilosas. Então, a área estratégica e científica norte-americana pensou num sistema de troca e compartilhamento de informações que permitisse a descentralização das mesmas, de modo a dificultar qualquer ataque inimigo.
Nasce nesse momento o conceito de rede que vem configurando um novo mundo ao redor da terra. O senador norte americano Al Gore dizia em 1992 que estava lançada a “superestrada da informação”, uma verdadeira explosão de troca, compartilhamento e fluxo contínuo de informações pelos quatros cantos do mundo. Em 2003 estavam conectadas 600 milhões de pessoas e em 2007 o mundo em rede atingia 1.234.000 de pessoas. O mundo então não foi globalizado, mas está em rede, em muitas redes, que tornaram o planeta muito menor. Estamos melhor?
Essa revolução provocou uma mudança paradigmática na estrutura da sociedade, sempre constituída na perspectiva vertical e hierárquica. O mundo em rede quebrou a verticalidade da informação, da própria autoridade. Não é mais possível pensar o mundo a partir do critério da autoridade hierárquica, mas da influência constituída em rede. Autoridades perdem seu lugar de poder, transformando-se em algo líquido, como nos diz Balmann. Costumamos dizer que se algo “caiu na rede já era”. Não há mais controle do fluxo e do compartilhamento. Essa loucura da civilização levou o mundo a conhecer o contraditório da verdade, ou seja, a mentira, a fake News. Parece que a internet foi o terreno onde o Diabo encontro terreno fértil para semear suas armadilhas. Só para não esquecer o cenário do pecado original foi constituído a partir da mentira, da dissimulação, do simulacro.
O ano de 2016 foi escolhido pelo Dicionário de Oxford como o ano da “Pós-Verdade”, mostrando que as circunstâncias dos fatos objetivos são menos influentes para determinar a opinião pública do que os apelos a emoções e crenças pessoais. Por exemplo, o Papa Francisco foi objeto de uma notícia falsa que assegurava que ele estaria apoiando o presidente Trump sendo compartilhada por mais de um milhão de pessoas. Em suma, estamos atravessando um tempo onde as notícias falsas mais amplificadas nas redes sociais promovem um engajamento 20% maior que as notícias verdadeiras.
Segundo a pesquisa TIC Domicílios 2019, três em quatro brasileiros estão conectados na internet, equivalendo a 134 milhões de pessoas. Essa mesma pesquisa revela outros dados importantes. Em meio urbano, 77% tem acesso à internet, enquanto no meio rural apenas 65%. Em termos de formação escolar, 97% possuem curso superior, enquanto 16% são analfabetos ou possuem apenas a educação infantil. Outro dado revelador do desafio da inclusão digital se refere à questão econômica. Pessoas que ganham mais de 3 salários mínimos representam 86% conectados, e que ganham menos de 1 salário mínio apenas 61% tem acesso à internet. Aqui está um dos pontos que precisam ser levados em conta quando se fala em evangelização nas redes sociais. Para quem? É preciso chegar às periferias existenciais e geográficas, nos convoca a Igreja.
1. O que a Igreja Católica apresenta a respeito desse desafio entre a evangelização e o mundo digital?
Em 2010, na Mensagem pelo 44º Dia Mundial das Comunicações Sociais intitulada “O sacerdote e a pastoral digital no mundo digital: os novos media ao serviço da Palavra”, o Papa Bento XVI dizia que “o sacerdote acaba por encontrar-se como que no limiar de uma ‘história nova’, porque quanto mais intensas forem as relações criadas pelas modernas tecnologias e mais ampliadas forem as fronteiras pelo mundo digital, tanto mais será chamado o sacerdote a ocupar-se disso pastoralmente, multiplicando o seu empenho em colocar os media ao serviço da Palavra”. Não se trata apenas de um espaço a ser ocupado, mas se exige dos sacerdotes a capacidade de estarem presentes nesse mundo tendo como papel de animadores de comunidades, pois representam ocasiões inéditas de diálogo e meios úteis para a evangelização.
Isso exige do sacerdote uma sólida preparação teológica e uma espiritualidade alimentada permanentemente pelo diálogo como Senhor. Ao contrário, a grande constatação nesses últimos dez anos é que houve uma decadência muito grande da formação teológica de pastores e sacerdotes, tornando-os mais fáceis presas das pregações ideológicas. Não apenas o povo de Deus está vulnerável, mas também seus pastores. Mais do que operador das mídias, deve ter um coração consagrado para dar alma ao seu serviço pastoral e ao fluxo comunicativo ininterrupto da rede. Uma constatação e observação um tanto quanto ainda superficial, parece-nos que ainda lhe falta uma sólida preparação em áreas das ciências humanas.
Em dezembro do ano passado, por ocasião de sua visita aos Estados Unidos, o Papa Francisco falou de maneira bem particular ao Arcebispo e ao Bispo auxiliar de Los Angeles mostrando o que se deveria entender por evangelização, especialmente aqui aplicada ao mundo digital. Não se trata de entulhar as redes sociais com orações de todo tipo numa espécie quase de magia espiritual ou pregações fortes e em alto som. Trata-se de primeiro adotar uma atitude de aceitação essencial para a evangelização, uma predisposição, uma espécie de pré-requisito.
Vejamos isso nas palavras do Papa: “Essa atitude não visa ocupar o espaço e a vida dos outros, mas semear a Boa Nova no solo de suas vidas; aprende a reconhecer e valorizar as sementes que Deus já plantou em seus corações antes de entrarmos em cena. Lembremos que Deus sempre nos precede, Deus sempre semeia antes de nós. Evangelizar não é encher um recipiente vazio, mas sim trazer à luz o que Deus já começou a realizar”. Muitos líderes religiosos e catequistas ainda percorrem o caminho pré-Vaticano II com ensinamentos de perguntas e respostas achando que isso seja evangelização. Há um endeusamento do “famoso” catecismo.
Evangelizar não é ministrar uma aula, por melhor que seja. E nesse encontro em Los Angeles o Papa Francisco toma como modelo a visita de Paulo a Atenas no Areópago. Paulo não chega reprovando os atenienses dizendo que eles entenderam tudo errado e que agora ele, Paulo, iria ensinar direitinho para eles. Isso seria uma aula, jamais uma evangelização. De início, Paulo aceita a religiosidade dos atenienses, seu patrimônio espiritual, acolhe mesmo vendo as ruas de Atenas repletas de ídolos e reconhece o desejo de Deus escondido no coração daquelas pessoas e diz que estava desejo de compartilhar com essas mesmas pessoas o maravilhoso dom da fé. Penso que essa situação seja bem emblemática para relacionar a evangelização com o mundo digital nos dias de hoje.
O Magistério do Papa Francisco tem apontado em mensagens e entrevistas como também em documentos os desafios para caminhar nessa superestrada. Ele nos diz que “o mundo virtual nunca pode substituir a beleza dos encontros cara a cara, porém o mundo digital é habitado e deve ser habitado por Cristãos”. Contudo, nenhuma tecnologia ou rede social poderá substituir a partilha do Pão Eucarístico, o Pão da caridade, o olhar nos olhos um do outro, o abraçar-se, o aperto de mãos dos doentes. Essa experiência cristã jamais será substituída pelo mundo virtual.
Na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Christus Vivit, ao falar aos jovens lhes apresenta a questão digital que não se reduz ao uso de um instrumento de comunicação, mas de se viver uma cultura digitalizada que impacta nossa noção de tempo e espaço, nossa percepção de nós mesmos, dos outros e do mundo. Temos melhores condições para comunicar, aprender, obter informações e até manter contatos com as pessoas de maneira instantânea. A internet tornou-se uma grande “praça” onde os jovens passam muito tempo e ali torna-se possível encontrar e alcançar e envolver os jovens nas próprias iniciativas e atividades pastorais. Contudo, ali também é um ambiente com muitos males como a solidão, a manipulação, a exploração do erotismo, as violências, a pornografia, os vícios, os interesses econômicos e a falsidade ideológica. O tempo da polarização política do Brasil com uso intensivo da internet serviu para coisas ruins, inclusive para rupturas familiares, eclesiais e pessoais. Pessoas se afastaram, comunidades se dividiram. Pessoas deixaram de conviver.
A Carta Encíclica Fratelli Tutti nos apresenta alguns pontos relativos às redes sociais e nós brasileiros bem podemos vestir a carapuça. Diz-nos a Encíclica que encontramos “formas insólitas de agressividade, com insultos, impropérios, difamação, afrontas verbais até destroçar a figura do outro”. Na experiência cotidiana de convivência social chega-se à triste realidade de que frente a frente jamais uma pessoa agrediria de forma assim tão violenta a outra pessoa. Hoje perdemos até a educação pronunciando grosserias, palavras de baixo calão, e isso é feito por autoridades políticas como Presidente do Brasil, Deputados e Senadores e até juízes de direito a quem caberia a mediação de conflitos. O lado ainda pior é quando um líder religioso, padre ou pastor, envereda nesse caminho desvairado da agressividade.
Outro alerta muito importante destacado nessa Carta Encíclica se refere aos controladores das redes sociais que são capazes de realizar formas muito sutis e invasivas, criando mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático. Entre nós, podemos dizer que nem alguns padres escapam desse pecado e tomando o altar como espaço da verdade vai semeando joio, vai disseminando mentiras, vai enganando o povo fiel. Alguns são capazes de contestar o Magistério pontifício e a Conferência dos Bispos.
Esse mal tem levado ao crescimento de atitudes fechadas e intolerantes, rompendo inclusive o direito à intimidade ou privacidade e transformando o outro numa figura de espetáculo a ser apedrejado, assassinado. As redes transformam assim a nossa vida em algo a ser espiado e não por acaso que faz tanto sucesso o Big Brother. A vida então transforma-se em algo controlado o tempo todo. A própria homilia proferida pelo padre é objeto dessa exposição e pobre dele se proferir alguma palavra inadequada que poderá ser descontextualizada e servir para o apedrejamento do sacerdote.
A rede também nos leva um mundo de superficialidade, de consumo instantâneo, ficando no passado no segundo seguinte. O que é essencial é jogado na panela da trivialidade junto de qualquer outro lixo. O que é importante para determinada pessoa? A liberdade de navegar é a garantia da venda de produtos, ideologias, projetos políticos. A Encíclica nos diz que “um caminho de fraternidade, local e universal, só pode ser percorrido por espírito livres e dispostos a encontros reais”. A tendência mais presente nos últimos anos foi bem ao contrário. Em vez de caminho para encontros, as redes serviram para construção de desencontros, de guerras.
Os Bispos, através da CNBB tão combatida pela extrema direita fascista, nos dizem que o mais importante no mundo digital não é a parte técnica, mas as dimensões éticas e pastorais. Dessa forma, a formação que se deseja vai bem além da questão da competência técnica. De que adiante termos pessoas tecnicamente superiores se rastejam no cotidiano ético e pastoral? O que temos visto crescer entre nós é a demanda ética e moral.
Como a internet dá a impressão de ninguém ser o responsável ou não possuir dono, cada pessoa se arvora no direito de dizer o que bem quiser e ensinar até a Doutrina Social sem nenhum aval institucional da Igreja. A CNBB nos diz que quem fala em nome da Igreja Católica deve estar em comunhão em todos os sentidos com a Igreja, em sua maneira de ser, pensar, sentir e agir. Há lideranças leigas e até ministros ordenados que já romperam esse aspecto de fidelidade à autoridade apostólica representada pelos Bispos. Sem comunhão eclesial nada pode ser feito. A polarização eleitoral promoveu diversas rupturas no interior da Igreja. Até alguns padres fizeram o contrário do que estava sendo orientado em Cartas pastorais. Essas pessoas fizeram e fazem um grande mal à Igreja, gerando muita confusão no meio do povo.
Ainda a CNBB orienta as pessoas para que busquem saber que valores e limites estão na cultura digital, o que está sendo veiculado, se está inserido num contexto que assegura a comunhão doutrinal e moral. Essa questão é das mais importantes, pois a estrada digital tem seus buracos, seus mata-burros. Hoje a Igreja do Brasil vive no imperioso dever de pacificar a fé. Estivemos vivendo uma fé em pé de guerra. Isso não expressa o Evangelho de Jesus Cristo.
2. Breve análise de conjuntura digital
A primeira coisa a se considerar é que o mundo digital é devorador do tempo das pessoas. A agência de marketing Sortlist calcula que no Brasil se gaste 10 horas e 8 minutos por dia na internet, equivalendo a 154 dias por ano. Seriam 145 minutos em que as pessoas ficam presas nas redes ou internet.
Podemos avançar mostrando outros dados. A pesquisa TIC Kids 2018 apresenta um quadro preocupante relativo a crianças e jovens na faixa etária de 9 a 17 anos. Aqui temos 86% deles conectados, enquanto a média da população em geral é de 70%. Isso pode estar refletindo no esvaziamento dessa população juvenil dos ambientes eclesiais e grupos sociais. Seus encontros são virtuais. Em cidades do interior, com ruas e praças mais tranquilas, é praticamente impossível encontrar jovens brincando, conversando, jogando.
Além dessa mostra visível de presença do mundo digital em nossas vidas, há uma outra realidade que fica escondida e se refere aos trabalhadores que atuam nas plataformas digitais de entregas e prestação de serviço. Uma pesquisa realizada pela Faculdade de Economia da UFBA em agosto de 2020 mostra que a grande maioria das pessoas que ali estão são jovens e trabalham em média 64,5 horas semanais em 6,16 dias por semana recebendo em média dois salários mínimos. Ainda nessa pesquisa, 33% dos entrevistados relatam já ter sofrido acidente de trabalho.
A evangelização no mundo operário estará cada vez mais diante de um novo tipo de trabalhador, não mais empregado (?), mas com auto percepção de cunho individualista sob o mito do empreendedorismo. Formam um grupo de trabalhadores que tem nos aplicativos sua ordem de serviço, com entregas a serem realizadas cada vez mais rápido de alimentos, produtos, serviços. Através de várias plataformas vão se “empregando” essas pessoas residentes em sua maioria nas periferias das cidades que fazem da rua seu chão de fábrica, sujeitos a violências de todo tipo e acidentes, muitos fatais. Como construir uma identidade coletiva com essa configuração ideológica? Como ajudar esses trabalhadores na produção de pautas mínimas e unificadas para negociação com as empresas que operam com plataformas digitais?
Não podemos ignorar o império que está se formando em torno do mundo digital cada vez mais complexo, mais lucrativo e mais concentrador. A Amazon hoje está avaliada em US$ 221 bilhões atuando no varejo como plataforma de venda de produtos de grande variedade de origem. A Google que trabalha com tecnologia está estimada em US$ 160 bilhões. Cada acesso ao Google é uma moedinha que entra em seus cofres. A Apple que atua na área de tecnologia é avaliada em US$ 141 bilhões. A Microsoft também da área de tecnologia em US$ 117 bilhões. A Samsung também da área de tecnologia com US$ 94 bilhões. E o Facebook que atua nas mídias sociais é avaliado em US$ 80 bilhões.
Podemos dizer que o mundo e principalmente o mercado se transformaram absurdamente com o advento do ambiente digital aumentando o ingresso de novos negócios, campanhas de todo tipo de vendas e atendimento, formando uma espécie de novo ecossistema. O potencial de expansão é imenso, imprevisível. O uso da tecnologia através das plataformas digitais vai encontrando as pessoas de maneira muito sutil, através de uma simples busca no google sobre determinada coisa de imediato seu perfil fica em linha direta com o setor que controla a plataforma bisbilhotando sua vida, seus interesses, os vídeos que assiste, etc.
No contexto religioso parece-nos que a questão fica ainda mais complexa, pois a fé não é um produto de compra e venda. Não poderíamos tomar o Evangelho como objeto do mercado religioso. Só para termos uma ideia vamos tomar o meio católico. A Rede Aparecida de Comunicação foi uma das pioneiras nessa superestrada percorrendo os caminhos da rádio, da TV e agora das mídias sociais. O canal YouTube no mês de maio desse ano atingiu 12.552.181 visulizações; Instagram com 1,4 milhões; Facebook com 4,5 milhões e TikTok com 1,2 milhões. Também a rede desenvolveu o Aplicativo Aparecida e Editora Santuário que registraram nesse mesmo mês 2.598.302 acessos. Esses números dão uma ideia de como esse caminho tem repercutido na vida das pessoas. Ao mesmo tempo não temos como não perguntar a respeito do processo de evangelização. Como avaliar esse caminho?
3. Influenciadores digitais católicos
Chegamos a um dos pontos que tem trazido preocupação e até problemas, pois estamos diante de verdadeiras celebridades que possuem milhares de seguidores. São verdadeiros gurus da era digital. No passado, os influenciadores era atores, artistas, atletas, músicos e celebridades dos famosos meios de comunicação como TV e rádio. Foi a partir de 1920 que a Coca-Cola tomou a figura de São Nicolau e lhe acoplou o Papai Noel para vender refrigerante.
O Papa Francisco, falando aos jovens na JMJ em 2019, pedia que eles se tornassem influencers de Deus ao estilo de Maria, num “faça-se em mim...”. E continua: “Só o amor nos torna mais humanos, mais plenos. Todo o resto são placebos bons, mas vazios”.
Conforme o Jornal Metrópoles e publicado em 02 de março de 2022, os dez maiores influenciadores cristãos são: Pe. Fábio de Melo com 25,3 milhões de seguidores; Pr. Deive Leonardo com 10,6 milhões; Pr. Cláudio Duarte com 6,7 milhões; Pe. Marcelo Rossi com 6,3 milhões; Pr. André Valadão com 4 milhões; Pr. Silas Malafaia com 3,3 milhões; Pra. Ana Paula Valadão com 3 milhões; Pr. Samuel Mariano com 2,8 milhões; Pr. Antônio Junior com 2,7 milhões.
No meio católico repercutiu muito o trabalho do influencer e editor do site Brasil sem Medo, Bernardo P. Küster, considerado propagador de fake Nwes relativas à pandemia, à vacina, às teorias da conspiração ligadas relativas “esquerda e pedofilia”, e até anunciando um suposto atentado a Donald Trump. Ficou conhecido como um influencer que desinforma e manipula as pessoas.
Sem querer nos estender nessa questão, temos a sensação que mesmo o terreno de influencer sofre da doença de um empobrecimento cultural. Nem o clero escapa desse problema nos tempos atuais como nos assegura o Vice-Chanceler da Pontifícia Academia de Ciências Sociais, Monsenhor Dario Eduardo Viganó. Autoridade e credibilidade são dois atributos essenciais. Contudo, aqui também é preciso incluir outras competências além dos estudos teológicos. Temos carência de estudo nas ciências humanas. E temos carência na condução de posturas éticas e morais.
Além disso, torna-se imperioso aprofundar como se dá essa nova forma de influenciar a sociedade, pois estamos diante de verdadeiros “coletivos digitais”, que são entidades complexas tanto em sua manifestação como em sua ação social. A conexão instantânea dá a esses conjuntos de indivíduos capacidades de articulação e interação sem previsibilidade. Estamos muito acostumados em tratar dos movimentos sociais como movimentos coletivos. Agora estamos diante de outro modelo de movimento, muito mais rápido em suas ações e articulações.
4. Vejam como não se amam!
Estávamos caminhando de maneira bem firme nesse novo areópago como um lugar com inúmeras possibilidades, uma ágora dos tempos atuais e chegamos até a pensar numa ciberteologia, indicando que o ambiente digital ocupa um lugar teológico, que nos leve a refletir e ler a realidade sobre a fé hoje. Falávamos inclusive de uma catequese digital. O Diretório de 2020 entre os números 359-379 contempla essa temática desafiadora. É preciso sim pensar a fé cristã nos tempos da rede. Nossos irmãos protestantes em 2014 já exaltavam uma teologia digital. A cultura digital vai constituindo novos sujeitos eclesiais.
Víamos como nessa nova cultura vão se constituindo relações sociais mais horizontais, mais colaborativas e compartilhadas. Ao mesmo tempo, os nativos digitais foram crescendo num ambiente de pluralidade e multicultural que os vai educando como juventude mais aberta e tolerante, ativista intenso no combate às injustiças sociais. Dessa forma, resplandecia em nossa frente uma evangelização como encontro autêntico, como diálogo fecundo, escuta ativa, olhar atento, com gestos de ternura. É uma evangelização concretizada como comunhão.
De repente, não mais que de repente, a guerra! A semente da discórdia estava lançada e vai nascendo em meio aos terrenos católicos, produzindo uma intolerância intracatólica e demonstrando uma antievangelização. O que aconteceu em nossa história para nos transformarmos em novos cruzados medievais em pé de guerra? Por que partimos rapidamente para empunhar armas de grosso calibre? As redes tornaram-se rapidamente campos de batalha, de guerra. Famílias dilaceradas pelo ódio e intolerância. Comunidades eclesiais partidas.
Um novo catecismo estava sendo pregado tomando por base não a comunhão digital, mas o ódio digital. Raiva e rancor foram digitalizados e compartilhados inclusive por líderes religiosos ordenados. Pastores de muitas igrejas e até alguns padres e diáconos tornaram-se os portadores de uma visão apocalíptica de guerra total. Sites e redes sociais foram tomadas de assalto e se transformaram em campo de expressões de intolerância radical, indiferença, desinformação, negacionismo, difamação, discriminação, preconceito, xenofobia. O altar da comunhão tornou-se palanque do ódio. O livro sagrado, usado a seu bel prazer, de maneira fundamentalista alimentando o ódio.
Bem que o Papa Francisco tinha alertado na Carta Encíclica Fratelli Tutti que as redes de violência verbal através da internet também são alimentadas por pessoas cristãs, católicas. E nos interroga: “Agindo assim, qual contribuição se dá para a fraternidade que o Pai comum nos propõe?”
Pois bem! Da noite para o dia nasceram milhões de pessoas cuja função social digital é odiar. São pessoas que vivem na internet e diante de alguma postagem, imediatamente agem proferindo palavras de ódio – esse é o odiador digital, o hater – e pobre da pessoa objeto de seu ódio. É logo apedrejada pois o trabalho do odiador digital tem um alcance rápido e dissemina em progressão geométrica (2-4-8-16-32-64-128...) causando dano, estrago, morte. A agressividade social encontra um espaço de ampliação incomparável no mundo digital, o que não acontecia nas relações de proximidade física. O ódio digitaliza se torna onipresente, ubíquo como Deus o é. Além da velocidade alcançada, o ódio digital ali permanece, estando presente a qualquer momento. Não é por acaso que foi instituído no governo que está terminando no Brasil o chamado gabinete do ódio.
A pessoa hater não tem nome e pode ser qualquer um. Parece ficar no anonimato, mas sempre a espreita para atacar a quem ele acha que deve atacar, ou a quem lhe foi dito para atacar. Não importa se essa pessoa que deve ser execrada seja o seu Bispo ou o próprio Papa. A arma do hater está no seu bolso e tem por função transforar o ódio particular num ódio público, para apedrejamento público. E o mais incrível ainda nesses tempos de redes é que não se trabalha com ódios isolados. Eles podem e devem ser conectados formam um ambiente, uma ecologia do ódio, sem fronteiras, comungando de um mesmo ressentimento.
A cultura do descarte atinge seu lado pior, mais sujo, mais podre. Não se quer nem saber quem é a pessoa objeto do ódio. Cria-se então nesse ambiente que era visto de maneira até romântica uma cultura do descarte digital, que visa “destroçar a figura do outro, num desregramento tal, que, se existisse no contato pessoal, acabaríamos todos por nos destruir entre nós”, nos diz o Papa Francisco em Fratelli Tutti 44.
O pesquisador Massimo Faggioli classifica esse momento como “era da raiva” que faz com que emerja um novo tipo de censura baseada na violência verbal para intimidar os católicos individualmente, bem como autoridades e instituições religiosas. E logo são criadas “cibermilícias católicas que propagam violência, numa militância venenosa em prejuízo da comunhão eclesial. Pode nascer desse contexto uma nova teologia, não da comunhão e libertação, mas da humilhação. Humilham-se pessoas, autoridades, grupos, lideranças, que se sentem impotentes perante essa pressão social midiática.
Essa guerra tem sido conduzida por grupos ditos religiosos e até algumas instituições para minar o caminho do pontificado do Papa Francisco e destruição das intuições do Espírito no Vaticano II. Esses grupos vão construindo pequenos exércitos de “católicos ultraconservadores”, de extrema direita, que se consideram os guardiães da verdadeira doutrina. Esses grupos crescem nos jardins da própria Igreja, pois sempre encontram um ministro ordenado que lhes dá amparo institucional. Dizem: estamos sendo acompanhados pelo padre fulano.
Por fim, entre nós é preciso considerar que o mundo digital envolvido nas redes tornou-se um espaço sem lei, sem controle, dominado pela mentira, pelo crime, pela milícia digital. Estamos diante de um terreno extremamente violento, em permanente estado de guerra. A violação da lei nesse domínio compensa tudo e se enquadra num domínio da impunidade. Não estamos diante de uma nova Reforma religiosa como no advento da imprensa. Os tempos atuais são sombrios. A cooptação das Igrejas pelo poder da extrema direita fascista está promovendo a decadência dos valores evangélicos vividos pelas pessoas e dividindo a Igreja católica a partir dos escalões hierárquicos. Como em tantos momentos de crise na história, o caminho seguro para garantir a unidade é claro. Quem mais deseja a destruição do símbolo da unidade da Igreja católica são forças obscuras que também elevam mãos aos céus e pregam nos altares.
A conjuntura atual exige que olhemos um pouco mais às coisas que aconteceram e andam acontecendo do nosso lado, especialmente no último mês da campanha eleitoral e do período pós-eleitoral com as manifestações nas estradas e sua continuidade nos quartéis. O mundo digital foi invadido pelos interesses religiosos e políticos.
5. Como caminhar nesse turbilhão complexo onde religião e política foram chamadas para a praça pública?
Anterior ao bolsonarismo é a emergência da extrema direita fascista/nazista. Esta foi se aproximando de Jair Bolsonaro iniciando em 2011 quando ele proferiu uma ofensa racista contra Preta Gil. Posteriormente disse no Congresso Nacional que os alunos do Colégio Militar do Rio de Janeiro poderiam usar a figura de A. Hitler como paraninfo. Daí em diante ele só foi crescendo, tendo muito apoio em Santa Catarina especialmente da vice-governadora eleita.
Um olhar mais atualizado a partir das manifestações nas estradas e em frente aos quarteis, com as pessoas rezando de joelhos a oração do Pai-Nosso ou reproduzindo o muro das lamentações nos afasta da inclinação de achar que houve uma aliança entre as Igrejas pentecostais e neopentecostais com o bolsonarismo, com apoio dos católicos conservadores. É evidente antes mesmo da derrota de Bolsonaro o afastamento de dois grandes líderes evangélicos Silas Malafaia e Edir Macedo. Não se trata de mero oportunismo. É mais o reconhecimento da obstrução do caminho eclesiológico pregado por eles e a pregação fascista/nazista.
O apoio dos grupos religiosos nas eleições não nos parece indicar uma aliança política com as Igrejas. Parece-nos que o que se mostra tem pouco a ver com religião. Estaríamos diante de um outro fenômeno de cunho religioso que pode ser identificado como uma espécie de messianismo religioso, que vai abarcar todo o conjunto das identidades religiosas. Isso nos parece fazer mais sentido. Nesse cenário ficam evidentes os ideais de messianismo, salvacionismo, ruptura de horizonte configurado pelas identidades religiosas, retorno de Cristo, chegada do messias e até o pagamento das dívidas no tempo.
A extrema direita tem pressa e organização para mudar o cenário da noite para o dia. E insiste que há pouco tempo para resolver questões tão profundas. Daí a necessidade da interferência militar. Estamos diante da produção de uma nova utopia e as ferramentas dialógicas que estamos acostumados a usar não resolvem. O diálogo necessário precisa atingir as profundezas.
Fomos educados num catecismo que separava a Transcendência da imanência, porém o mundo contemporâneo nos convoca para resgatar a Transcendência na imanência. A religião cumpre sua função social na medida em que organiza o mundo das pessoas de maneira rápida. Por isso, as pregações que mais causavam impactos na campanha eleitoral eram aquelas que mostravam a existência de uma guerra santa entre os homens de bem e os homens que não estão com Deus. Bolsonaro cumpriu perfeitamente esse script demonstrando sempre ser o escolhido de Deus, inclusive colocando Deus acima de todos.
O mundo em que a religião se situa refere-se a todo instante ao aqui e agora, com práticas concretas cotidianas, com solução de problemas imediatos, com movimentos de solidariedade especialmente com os mais pobres. As pautas dos costumes é um disfarce usado pela extrema direita fascista para aglutinar as pessoas. Não há sustentação em nenhuma teologia moral mesmo sendo da prosperidade, do domínio ou da libertação. Fazem parte da teoria conspiracionista como foi feita com os judeus colocados nos campos de concentração. Não estão discutindo se a esquerda é a favor do aborto, mas que a esquerda vai obrigar a todo mundo fazer aborto. Isso mexe com o imaginário das pessoas. Muitas lideranças católicas caíram no engodo da agenda moral e acabaram fortalecendo ainda mais o ideário fascista e nazista.
Alguns pontos podem ser apontados nesse caminho confuso. Em primeiro lugar precisamos que as instituições da república funcionem. Estamos diante de uma guerra híbrida conduzida por juízes, políticos e generais, que não podem ser tomados individualmente. As manifestações nos quarteis e nas estradas seriam facilmente resolvidas se houve ação institucional. Mas estamos na guerra. Nessas manifestações não estamos diante do movimento dos caminhoneiros como inicialmente se imaginava. Há grupos como das famílias militares aí presentes, há grupos bolsonaristas, há organizações de redes financiadas e setores empresariais. O militarismo ali presente junta muito mais que a força e a farda. Reúne guerra, religião, moral, ideologia ultraindividualista e interesses econômicos.
A grande dificuldade tanto para a compreensão dos fenômenos sociais e políticos e também eclesiais está na mudança de lugar das mediações. O bolsonarismo chegou ao poder desconsiderando de maneira rápida as mediações tradicionais como partidos políticos e instituições republicanas. Logo iniciou o plano de guerra como governo produzindo uma lógica que desumaniza os inimigos trazendo para o campo de batalha o usuário comum com uma estética de forte impacto como motociatas, manifestações, cercadinho diário, apelando sempre para os afetos e as emoções.
Nesse formato de batalha a guerra foi alimentada sempre não no campo intelectual e racional, mas das redes digitais. Bolsonaro fez um governo via digital e somente assim é possível entender como ele conseguiu destruir Moro e Mandetta muito facilmente e quando quiser poderia trazê-los novamente para perto de si. A estrutura em algoritmos tirou o foco em pessoas ou entes particulares e a rede fez o resto. Bolsonaro exerceu um governo de populismo digital, como hoje denomina a pesquisadora Letícia Cesarino.
Uma questão central é sobre quem ganha e o que se ganha com tudo isso? São atores conscientes que estão usando esse fato para seus interesses. Há uma máquina opera nessas redes de forma organizada e criptografada, coesa, hierárquica e autorregulada. Trata-se da máquina militar e por isso não se resolve a questão. Será que essa tendência irá continuar ou a horizontalidade das redes nos levaria para outros desdobramentos? Como iremos pautar nossas vidas nesse caminho tão desafiador?
A primeira coisa a se fazer é investir forte na educação e nas comunicações para que a sociedade entenda como se chega a esse ponto. Não adianta falar mal do nazismo dos campos de concentração, mas de como foi possível o mundo chegar àquela tragédia. É preciso desmascarar o bolsonorismo pois ele possui relações profundas e perenes com o nazismo. É preciso desnazificar o Brasil.
O governo Lula terá que desbolsonarizar o Brasil. E para isso o governo de coalisão é de fundamental importância resgatando inclusive a direita liberal e democrática, isolando a extrema-direita. Terá que ser um governo de frente ampla que conquiste os corações e as mentes das pessoas que foram excluídas do governo da extrema-direita. Não pode perder a base eleitoral que lhe permitiu vencer Bolsonaro.
Enquanto Igreja católica torna-se essencial seguir as reformas do Papa Francisco, inclusive purificando centros formativos de clérigos e diáconos. Torna-se essencial uma formação teológica compatível com o Magistério da Igreja destacando-se a Doutrina Social da Igreja e o Concílio Vaticano II. Será um desastre para a Igreja deixar crescer internamente grupos conectados às polarizações. A diversidade de concepção é uma coisa. Polarização significa cisma, ruptura, quebra da unidade. A maior contribuição que as Igrejas cristãs podem dar ao país está nesse caminho ecumênico e sinodal, educando o povo de cada comunidade eclesial.
A Igreja Católica ressente de ainda estar marcada por um catolicismo clerical implantado a partir de Trento tendo por objetivo enfrentar o cisma da Reforma e condenando a modernidade. Não foi capaz de evoluir ao longo da história. Atuou fortemente no campo defensivo considerando até hoje as ameaças externas como veneno. A transição religiosa aprofundou ainda mais essa crise fazendo com que o catolicismo se prostrasse sob os pés da própria instituição. As trilhas de Francisco estão sendo abertas a cada instante de seu Magistério e o chamado à caminhada sinodal é o modo com que a Igreja será capaz de enfrentar os novos desafios, desconstruindo uma estrutura clerical ultrapassada e anacrônica, não mais compatível com a vida dos fiéis.