Foi-se o tempo que o calendário litúrgico da Igreja Católica era regra universal de caráter obrigatório para todos. Foi-se o tempo em que a quarta-feira depois do carnaval era realmente de cinzas. Hoje essa quarta-feira está mais para cheiro de álcool e diversão, que penitência e conversão. Alguns grupos religiosos ainda insistem em impor à cidade um calendário que não mais lhe pertence. Tornou-se secular, laico. A cidade não é mais espaço de convívio religioso, mas ambiente democrático, plural, e nem mesmo um poder como o judiciário tem a seu dispor o direito de obrigar ao fim do carnaval na quarta-feira de cinza.
A cidade de Vitória, especialmente o seu centro, parece ser espaço para a nova disputa moral do poder político com a mediação de membros do poder judiciário. O melhor que deveria acontecer é esse poder eximir-se desse imbróglio. Somente vai conspurcar-se. O mais ridículo ainda parece ser, segundo o membro do poder judiciário que notificou a Prefeitura, é alegar barulho e sujeira. A mesma regra não vale para os demais bairros. Então, somente o centro de Vitória está incomodado com sujeira e barulho?
Se a questão for sujeita, temos muito a debater, pois nem as praias da grande Vitória escapam desse mal. Aqui pertinho na Praia do Canto, região da Ilha do Frade e Ilha do Boi, meus netos não conseguiram entrar nas aguas dessas praias tamanha a sujeira ali depositada. Tá passando da hora de varrer o fundo do mar. As ruas da Praia do Canto estão sob a tutela de seus moradores, e a sujeira de animais defecando é grande. Como ficavam as ruas no entorno do Triângulo das Bermudas depois dos jogos da copa do mundo, ou dos campeonatos brasileiros como carioca e brasileiro? Ah! Os torcedores não fazem barulhos durantes os jogos? Quem solta tantos rojões pela cidade? Tantos fogos que nossos pets não sabem onde se esconder!
Durante as campanhas eleitorais a região da Praia do Canto convive com tanto barulho, tantos gritos, tantos trios elétricos, enfim, esse barulho todo não incomoda a ninguém? O som da Praça do Papa chega a Jardim da Penha. Quem fiscaliza isso? Quem proíbe isso? Quem cuida da vida urbana?
Por fim, não precisamos de nenhum poder que nos obrigue a uma norma moral ou religiosa, mas um poder que nos obrigue a viver democraticamente na cidade. Esse espaço é essencialmente democrático. Serão as regras da democracia o maior valor a ser defendido, legislado, gestado pelos senhores eleitos pelo povo. Algo em contrário a isso torna-se tirania e não democracia. O tempo dos tiranos ficou no passado, mas alguns grupos querem ressuscitar em prol de seus interesses eleitorais. O carnaval deve terminar no momento estabelecido pela convivência democrática, votado e registrado. Não é a opinião de algum magistrado que deva se impor como norma, mas o desejo democrático de um convívio harmonioso e seguro.