Edebrande Cavalieri
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Análise da conjuntura escolar

A sociedade brasileira vem sendo sacudida pela violência nas escolas e ameaças que são feitas em larga escala. Na semana em que foi morta a facadas uma professora em São Paulo, ocorreram 279 ameaças na rede estadual. É um índice elevadíssimo, pois de janeiro até o dia 26 de março desse ano, só tivemos 82 ameaças. As duas últimas décadas estão sendo marcadas pelo crescimento da violência escolar. Contudo, foi a partir de 2018 que os ataques cresceram em larga escala. A escola brasileira não possuía experiências assim tão fortes e traumatizantes.

 

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em pesquisa divulgada em 2019 feita em diversos países do mundo colocou o Brasil entre os índices mais elevados do mundo no ranking de agressão a professores por semana atingindo a cifra de 10% das escolas nacionais. A média internacional é de 3%. Intimidação e abuso verbal são os mais comuns, chegando agora às ameaças físicas e mortes.

 

A questão da violência é um dos fenômenos mais complexos da cultura humana. Assim podemos falar de uma violência na escola, como também uma violência da escola. Numa sociedade onde se cultiva o fracasso escolar sem políticas públicas de enfrentamento, onde crescem os diversos tipos de desigualdade, onde a reprovação e o abandono escolar caminham juntos e onde há uma discrepância entre idade e série, torna-se difícil resolver a questão da violência com um toque de mágica, tipo militarizando as escolas.

 

O pensador contemporâneo René Girard nos apresenta uma teoria que permite compreender melhor a violência. Ele se refere ao “desejo mimético” que nada mais é do que o desejo de possuir tudo o que o outro tem. Esse desejo, se por um lado, aperfeiçoa as faculdades de aprendizagem, também alimenta sua própria violência gerando conflitos de apropriação. Esse autor busca essa compreensão a partir de formas religiosas arcaicas e extremistas como o “mecanismo vitimário”, em que se elege uma “vítima arbitrária” em torno da qual todo o grupo se une. Tem-se ali o movimento de eliminação do “bode expiatório”. Esse se torna um “imperativo coletivo”. Todo mundo é chamado para o exorcismo desencadeando uma crise que será restauradora da paz. O chamado do nome de Deus levado ao grau máximo para preencher frustrações sociais, políticas, identitárias ou justificar um projeto totalitário de poder torna-se responsável pelos maiores crimes na face da terra.

 

Entre nós nos últimos anos, temos visto como a recuperação do sagrado por parte de alguns grupos transformou-se em caminho de violência entre nós. Não é casual que a política extremista decidiu colocar “Deus” acima de todos. Vimos como esses grupos foram capazes de “sacrificar” sua própria vida e a dos outros para atingir seus objetivos. Trata-se de um sagrado que produz violência. Também a violência produz o sagrado. O homem transforma o sagrado em elemento cultural para justificar, legitimar ou regular sua própria violência. “Em nome de Deus”. Os soldados nazistas escreviam sempre “Deus conosco” em seus cintos. Não importa se o nazismo é essencialmente uma ideologia ateia. No contexto das guerras nasceram muitas entidades religiosas. Nos panteões sempre existiram deuses da guerra.

 

Como tem crescido entre nós a tendência fundamentalista de cunho religioso, de viés cristão, percebe-se como se usa intensivamente as Escrituras do Velho Testamento com imagens contraditórias a respeito de Deus. Como escapar de tantos oráculos de violência contra as nações vizinhas descritos no livro de Jeremias? Como compreender que Yahvé determina a destruição de várias cidades? Temos um Deus que é violento e fomenta a violência. A imagem mais forte no Antigo Testamento é de um Deus que está ao lado do povo fiel e que determinava a eliminação dos inimigos.

 

No Brasil, cresceu muito a pregação religiosa baseada num judaísmo do Antigo Testamento. Os púlpitos das Igrejas tornaram-se os maiores propagadores de um Deus guerreiro, de uma Deus todo poderoso, de um Deus dos exércitos. Por isso, empunhar uma arma nas Igrejas é tão normal. Até padres empunharam armas nas campanhas eleitorais. Fazer arminha não é um gesto banal como muitos imaginam. Estamos gestando dentro de cada mente um novo “guerreiro”. Desfilar com carro transportando uma arma não é algo trivial e inofensivo. Alguns analistas definem o bolsonarismo como uma milícia religiosa.

 

Não precisamos fazer muito esforço para perceber como a violência tem crescido a partir de 2018. A polarização da sociedade foi determinante nesse processo. Diante da pandemia forjou-se uma polarização a ponto de negar a própria ciência e a eficácia das vacinas. Vimos uma sociedade dividida diante de uma tragédia aumentando ainda mais a violência das mortes pela pandemia. Atrasar a compra de vacinas também é uma forma de assassinar as pessoas.

 

A polarização foi o caminho mais fácil para o fortalecimento de grupos de extrema direita nazista e fascista. Hoje muitos estão exigindo policiamento em todas as escolas do Brasil como se fosse esse o melhor caminho para enfrentar a violência nas escolas. A tragédia de Coqueiral de Aracruz aconteceu no interior de uma família cujo pai era militar. O filho de 16 anos portava as armas do pai vestido com roupas nazistas para executar professores seus e colegas em duas escolas. O patrulhamento policial nas escolas não é o melhor caminho e nem o Estado possui polícia suficiente para isso. Nem professores consegue!

 

O primeiro passo é reconhecer que temos “algo novo no ar”. Não estamos diante daquela violência comum que havia até poucos anos atrás. Estamos diante de um quadro que exige mobilização de autoridades políticas, profissionais de educação e da segurança pública. Aliado a isso, é preciso incorporar os conhecimentos provindos do meio acadêmico e científico. E isso tudo deve ser prioridade absoluta.

 

Esse quadro novo se agrava com o aumento da vulnerabilidade dos jovens às ideologias extremistas. Sempre houve essa tendência, mas temos a impressão de estarmos diante de uma juventude que retarda seu crescimento e desenvolvimento psicossocial. Há uma grande quantidade deles que chega à casa dos trinta anos com pouquíssimo amadurecimento. Poucos assumem responsabilidades antes dos 20 anos. Vivem no mundo da internet e das redes sociais, da imagem de si mesmos, do culto ao corpo, da festa.

 

Aliado a isso vemos um crescimento internacional de grupos que agem online sem nenhuma restrição por parte das plataformas de comunicação. Esse caminho não tem limite e nem controle, e tem no público mais jovem a terra para agirem livremente disseminando todo tipo de produto, grande parte direcionado a joguinhos e fake News.

 

A liberação de armas no Brasil trouxe a sensação de que cada um pode se defender dos bandidos e que inimigos devem ser destruídos, eliminados. As armas dos jogos virtuais agora tornaram-se realidade. Essa mesma juventude imatura não mais distingue o mundo real do mundo virtual.

 

A disseminação de discursos racistas hoje é uma prática de difícil controle. Trata-se de um racismo provindo de ideologia extremista como fascismo e nazismo. Não estamos diante de um racismo de brincadeiras. Agora é preciso extirpar aquele tipo de raça do nosso meio.

 

No mesmo patamar do racismo temos o aumento dos discursos misóginos que é uma repulsa, um despreza ou ódio contra as mulheres. Ela é posta sempre numa visão sexista cuja relação é de ser subalterna ao homem. O pentecostalismo contribuiu muito para imputar à mulher esse lugar subalterno. Em nome das Escrituras pregadores religiosos em suas Igrejas recomendam que a mulher seja submissa ao marido, pois ele é a cabeça da família. Chegam inclusive recomendar que as mulheres não façam curso superior, pois isso a colocaria em disputa com o homem e isso não é a vontade do Senhor. Então os homens passam a ter um controle sobre as mulheres, produzem discursos de desprezos e até de ódio.

 

Por fim, essa mesma juventude sofre também os impactos das mídias sociais. Possuir milhares de seguidores, ser influencer e ganhar muito dinheiro, em suma, alimenta em si mesmo o desejo da espetacularização de si. Nossos jovens dessa forma vão sendo contaminados por um mundo sem controle e sem limites. Sem regras e sem donos.

A primeira medida é não encher as escolas de seguranças armados, mas encher as escolas de movimentos educativos para a paz. As medidas de prevenção são mais eficazes que aquelas do uso da força. Discursos de ódio, com gestos de violência apontando armas, somente fazem crescer a violência entre nós. Precisamos romper a polarização política, pois esse caminho poderá ser a destruição da democracia e o império da violência ainda mais forte. Contudo, há grandes interesses envolvidos nessa polarização. Há grupos poderosos que arregimenta os jovens e querem manter a sociedade dividida. Seria o caminho mais fácil para vencer uma eleição e impor o poder.

 

Os Estados Unidos nunca investiram tanto em medidas para aumentar a segurança escolar, mas também nunca viram tantos massacres como nos últimos anos. Em 2021, o governo americano investiu 3,1 bilhões de dólares em sistemas de segurança e proteção. Isso permitiu que 90% das escolas possuíssem câmeras de videomonitoramento, 43% possuíssem botões do pânico, 78% com salas com fechaduras seguras e 65% dos funcionários das escolas destinados à segurança sendo que 51% deles trabalham armados com armas de fogo. Mesmo assim temos em 2021 e 2022 os índices mais elevados de ataques nas escolas com 42 e 47 casos respectivamente. Câmeras, detectores e interfones são comuns nas escolas, mas isso não inibiu o crescimento da violência. Tudo isso está longe de resolver a questão. A prevenção de massacres nas escolas, segundo especialistas, depende de outros fatores.

 

Como primeiros passos para se analisar a questão da violência, podemos considerar alguns pontos:

 

As redes sociais e a internet hoje estão cumprindo funções perigosas para o convívio social. Quem está por trás desse movimento? Aqui estamos num mundo novo e desconhecido e não sabemos ainda lidar com essa nova forma de comunicação social. As convocações para atos são instantâneas. Não há necessidade de criar mobilização. Criando um ambiente hostil, produzindo uma vítima expiatória, fica fácil mobilizar milhares de pessoas. Nas dinâmicas das redes sociais foram criadas diversas formas para identificar vítimas expiatórias, bodes expiatórios. Quem são? As mulheres, os negros, os indígenas, as crianças, os grupos LGBTQIA+. As minorias foram eleitas como vítimas. Nascer mulher, por exemplo, é para um governante cometer um fraquejamento.

 

As ameaças às escolas contaminaram o país em pouco tempo. Cidades pacatas já estavam tendo que lidar com ameaças. As redes tornaram-se armas perigosas. No tempo das brincadeiras de rua era fácil saber com quem estavam nossos filhos. Hoje não sabemos nada. Então, cabe a polícia investigativa que é a instituição capacitada para identificar os líderes desses movimentos violentos e entrega-los à justiça para o devido processo penal. Aos pais aumenta ainda mais sua tarefa. Se no passado era preciso verificar as mochilas, coisa que nunca fiz, mas muitos pais assim o fizeram e fazem, hoje é preciso verificar com quem nossos filhos andam nas redes sociais.

 

É no silêncio das madrugadas que nossos filhos percorrem os caminhos mais perigosos, não das ruas, mas das redes sociais e internet. Esses espaços estão promovendo ódio e violência até em simples joguinhos que nos parecem ingênuos. Há muito estímulo à violência espalhado nas redes sociais e na internet. O mundo globalizado está à mão, na palma da mão. Tem criança com menos de cinco anos de idade já usando celular com joguinho para se “distrair”.

 

A violência nas escolas também tem sua face política. A partir de 2018 na eleição polarizada entre Aécio Neves e Dilma Rousself as agressões nas campanhas políticas só cresceram. A agressividade no governo passado tornou-se forma de governar o país. Palavras de cunho imoral e pejorativo que incitavam o ódio foram ditas por autoridades políticas e tornaram-se comuns. Expressões que jamais entraram na minha casa, passaram a circular nas redes e nos meios de comunicação. Criou-se até um “gabinete do ódio”. As manifestações políticas são cada vez mais temidas por serem espaços de violência. O nosso povo anda com muito medo e em silêncio. Porém, essa disseminação política da violência tem alto preço.

 

A partir da esfera política chega-se a um quadro de normalização da agressividade. Ela faz parte das relações sociais. Ela entra nas escolas pelo portão central. Os ataques políticos às universidades foram feitos de maneira violenta, com uso de mentiras e palavras de baixo calão. Hoje, conforme a pesquisa da OCDE, temos 48% dos professores sofrendo agressão verbal, 20% sofrendo assédio moral, 16% bullying, 15% discriminação, 8% furto/roubo, 5% agressão física e 2% roubo ou assalto à mão armada. Esse quadro nos mostra como a escola sofre naquilo que lhe é mais sagrado, a autoridade de educar.

 

Ações de prevenção também são aquelas que garantem espaços de acompanhamento escolar no dia a dia de profissionais capacitados para identificar comportamentos estranhos entre as pessoas que frequentam as escolas. É o caso do trabalho de psicólogos e assistentes sociais. Esses profissionais são essenciais no dia a dia da escola. Temos uma sociedade adoecida psiquicamente, adoecida mentalmente. A identificação de casos psicopatas ajudaria muito no tratamento e acompanhamento dessas pessoas ao mesmo tempo que protegeria não apenas a escola, mas a própria sociedade diante da possibilidade de surtos psiquiátricos.

 

O enfrentamento da violência somente terá eficácia na medida em que a sociedade como um todo empenhar-se em sua superação. A escola sozinha não irá dar conta desse desafio. Organizações sociais e políticas são fundamentais. Em vez de ficar discutindo “escola sem partido”, melhor seria discutir escola sem violência. Em vez de perder tempo vereadores e deputados discutindo a identificação de gênero nos banheiros, seria melhor investir esse tempo e o dinheiro para controlar a violência nas escolas.

 

As Igrejas têm desempenhado papel muito importante nas últimas eleições. Até que ponto essas mesmas Igrejas não estariam de braços dados e abraçadas com candidaturas que propagam a violência? Muitas lideranças religiosas profanaram os Evangelhos de Jesus Cristo defendendo o uso de arma e da violência. A justificativa “para defesa pessoal” é lorota para enganar as pessoas e ganhar seu voto.

 

Por fim, já temos Estado que determinou a presença de um policial em cada escola. Esse é o caminho mais fácil e que rende votos nas eleições. Não sejamos ingênuos. É só pegar o dinheiro público, abrir processo seletivo, e colocar um em cada escola. A sensação de segurança estará garantida, porém a violência disseminada na sociedade e que repercute nas escolas ficará intacta. Os Estados Unidos fizeram esse caminho investindo muito dinheiro e os massacres aumentaram.

 

Hoje temos um desafio que é reunir o poder político, as organizações sociais, as instituições religiosas, junto com as escolas, sob a coordenação de grupos especializados nessa temática para pensar um plano de ação de enfrentamento desse problema. Hoje são as escolas, amanhã poderão ser outras instituições. Não sejamos ingênuos.

 

Edebrande Cavalieri
Enviado por Edebrande Cavalieri em 13/04/2023
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