Edebrande Cavalieri
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A vida difícil dos urubus nas cidades

Os tempos atuais mudaram tanto o habitat dos animais que tantas coisas acontecem e são verdadeiros mistérios. Um dos animais mais esquisitos e até certo ponto feio e nojento é o urubu. Nos ambientes rurais quando se via urubus nos céus o sentimento de tristeza invadia o semblante do colono, pois era sinal que alguma criação que podia ser um boi, um porco ou uma galinha tinha acabado de morrer e os urubus voando em círculos festejavam o banquete a vista. Assim, os urubus não eram animais dignos de apreciação ou de bom agouro. Sempre eram sinal de algo morto, carniça fedendo. Sinal de tristeza.

 

Contudo esse cenário está desaparecendo no interior com o aumento de cuidados com os animais em termos de medicina veterinária e médicos que logo buscam socorrer animais doentes impedindo assim a morte. Urubus ficaram sem ter o que comer no meio rural. Até mesmo os pássaros com o desmatamento das florestas foram desaparecendo. Nada parece cair morto nas terras de Cabral. Urubus passam fome voando pelos ares sem nada encontrar. Estão cada vez mais magros e nem dispendem tanto esforço para se manter nos céus.

 

O êxodo urbano que atingiu os homens do campo agora também está presente entre os animais. Os pombos que eram os verdadeiros donos da cidade, das torres das Igrejas e dos telhados das casas, agora recebem outros moradores e disputam os poucos alimentam que a cidade lhes oferece. A fome atinge o mundo animal e não apenas os homens. Pardais vieram em grande quantidade. Em todas as padarias eles chegam famintos voando em todos os cantinhos em busca de migalhas de pão. Quanta fartura! Os canários da terra então se divertem ainda mais. Encontram nos retrovisores dos carros seu momento de admiração de sua própria beleza. Um cocô branquinho sempre irá embelezar a pintura dos automóveis de luxo. Até mesmo os morcegos tiveram que deixar os ambientes rurais por falta de comida.

 

A cidade hoje se torna o ambiente mais democrático. É lugar de todos. Há teto para quase todo mundo. Abrigo há; porém muitos humanos ainda não conseguiram lugar para morar na cidade. O maior desafio da cidade é a alimentação. Em cada porta de supermercado ou padaria humanos e animais se encostam para pedir algo para comer. Os cachorrinhos são os mais bem tratados. Os gatinhos também não têm do que reclamar. E os pombos então é a festa da criançada que joga pipocas aos montes para eles se alimentarem.

 

O maior drama pela sobrevivência é vivido pelos urubus. Como são odiados, olhados com preconceitos, escorraçados de todos os lugares! Pobres urubus! Em pé de igualdade com os morcegos, sem ter do que comer. Isso parece até racismo animal. Esses animais tiveram que fazer diversos cursos de capacitação alimentar. Não há mais cheiro de carniça podre. Seu nariz hoje não consegue encontrar nada. E do alto dificilmente seus olhos irão enxergar algo morto.

 

Os urubus tiveram que montar cursos a distância para aprenderem como conseguir alimentos na cidade. E esses cursos, pelo visto, tiveram bastante alunos com excelentes resultados. No interior, as pequenas cidades com os cursos EAD foram muito beneficiadas. Então, urubus das metrópoles e das pequenas cidades todos estão no mesmo pé de igualdade para conquistar alimentos para seu estômago. O ensino a distância tem seu valor de inclusão também no meio animal. Pombos e pardais sempre estão a criticar o ensino a distância. Exatamente porque eles são aceitos sem nenhum preconceito. Mas que o digam os morcegos e os urubus. São discriminados o tempo todo. Até a torcida do time do flamengo passou a ser chamada de urubuzada.

 

Não sabemos por qual motivo. No início os jogadores do flamengo eram chamados de urubus e isso representava uma atitude racista que não era aceita pelos mesmos. Porém, num jogo entre botafogo e flamengo pelo campeonato carioca de 1969 no Estádio do Maracanã sobrevoou durante a partida um urubu tendo uma bandeira do flamengo amarrada em seus pés. Daí em diante, o urubu foi incorporado como mascote do time rubro-negro. Foi o primeiro movimento de inclusão urbana dessa ave sofrida e faminta.

 

Contudo, mesmo sendo aceito pela multidão de flamenguistas, isso não enchia o estômago. Flamenguista explora a pobre ave e a deixa sem alimento. Nas casas dos flamenguistas nem adiantava pedir comida. Eram escorraçados de maneira violenta. O curso feito a distância não tinha estágio obrigatório e por isso os pobres urubus não aprenderam onde procurar alimento na cidade.

 

Mas um dos alunos urubus mais inteligentes num lapso intuitivo fez uma grande descoberta. Tinha encontrado um grande depósito de carne fresca. Era tanta carne que os moradores daquela casa guardavam em freezer e geladeiras embaladas em sacolas plásticas. Só que naquele ambiente algo lhes parecia estranho. Estavam acostumados com as bandeiras em cor vermelha e preta. Mas aqueles flamenguistas jamais abriram sequer uma latinha de sardinha para oferecer aos senhores urubus, elevados a mascote do maior time do Brasil. Flamenguistas eram usuráveis! Nem uma manjubinha! Nem adiantava pedir. Seus pés já estavam calejados de tantas bandeiras carregadas pelos campos de futebol, mas uma comidinha nem pensar. Oh torcida cruel!

 

O depósito de carne está ali naquele morro de fácil acesso. Nem precisariam muito tempo para o pouso. Nos voos normais, era só fazer um mais rasante e o acesso à carne de melhor qualidade daquela cidade ali encontraria. A turma dos urubus festejou muito essa nova descoberta. As lideranças foram avisadas. Mas havia um problema como já mencionei. Naquele grande armazém também tremulava ao vento uma grande bandeira, só que era em preto e branco, com uma cruz no peito.

 

Um dos urubus disse que não era legal tentar invadir aquele lugar, pois lhe parecia sagrado. Uma cruz é coisa muito séria. Arriscar a maldição dos céus? Nem pensar. Já bastava a fome. Outro membro da comitiva de urubus deu uma explicação mais científica. Porém, era mais arriscado ainda. Aquela casa representava o lado inimigo da urubuzada. Havia o risco de levar tiro na bunda se algum urubu tentasse invadir aquele armazém para conseguir comida.

 

Do alto um grupo de urubus ficaram observando todos os movimentos daquela casa. Era preciso estudar tudo. Saber todos os hábitos. Eles conheciam como a urubuzada do Maracanã se comportava, mas ali estavam diante daquela turma de São Januário. Aquela bandeira era do Vasco da Gama. Assim, chegaram à conclusão: melhor arriscar a vida em São Januário que tem comida que ficar desfilando com bandeira nas pernas, mas com fome no Maracanã.

 

O líder dos urubus não perdia um movimento da dona da casa, Zeca ou Maria. Quem dava as coordenadas no armazém era ela. Todos os dias ela realizava inúmeras tarefas no terraço da casa. Isso era um bom sinal. Espaço aberto é mais fácil para se conseguir chegar. Do alto não perdia um só movimento da Zeca. Tinha hora que ela gritava com o marido, mas ele quase nunca aparecia lá em cima. Os urubus ficavam com medo, pois ele poderia estar preparando alguma tocaia contra flamenguistas intrusos. E se ele visse um urubu com a bandeira do flamengo amarrada aos pés? Era morte na certa. A Zeca gritava muito, mas não parecia ser ameaça para os urubus.

 

E numa manhã de sol radiante, sem nuvens no céu, eis que Zeca sobe ao terraço com um pacote na mão. Os urubus não conseguiam identificar corretamente do que se tratava. Mas era algo que chamava a atenção. Afinal, naquela casa o que não faltava era carne. E poderia ser uma bela picanha ou alcatra. Em excelente estado de conservação, pois estaria congelada. A suspeita percorreu os céus e todos os urubus se reuniram para definir o ataque. Se não fosse carne, servia como treinamento. Afinal, viver na cidade é uma luta pela sobrevivência em cada momento.

 

A dona Zeca não ficou muito tempo no terraço e lá deixou o pacote bem embalado. Desceu as escadas e não retornou. Os urubus ficaram na expectativa. Quem deveria arriscar um voo rasante para identificar aquele pacote? Era melhor que isso fosse realizado apenas por um, e assim não despertaria tanto a atenção dos donos daquele armazém vascaíno, que parecia português legítimo. E se fosse bacalhau salgado? Ferrou! Quem vai arriscar comer sal? A pressão arterial dos urubus é sempre elevada. Risco de enfarte. Mas era preciso saber que pacote era aquele que dona Zeca havia deixado. Poderia ser algum explosivo? Jamais. Poderia ser uma arma apontada para o outro lado da rua onde morava uma flamenguista.

 

O urubu escolhido desceu numa velocidade jamais alcançada por algum urubu. Era preciso rapidez, pois ninguém conhecia o marido da dona Zeca, senhor Valci. E se ele fosse campeão de tiro ao alvo? Pobre urubu. Morto estaria com um tiro apenas. Diziam que esse homem era experiente em matar mosquitos. Por muitos anos sua profissão até aposentar-se foi matar mosquitos. Como não acertaria um urubu mesmo em velocidade supersônica? Coisa fácil para o senhor Valci.

 

E na primeira tentativa, o urubu voador entrou no terraço de dona Zeca e pegou o pacote numa rapidez incrível. Logo ganhou altura e subiu os céus daquela cidadezinha. Fez uma força descomunal para carregar aquele pacote. Tudo tinha dado certo e ele estufava o peito todo orgulhoso pelo feito.

 

O que ele não esperava era ouvir aquela flamenguista, amiga de dona Zeca mesmo sendo vascaína, que aos gritos chamava desesperadamente. Gritava muito e os urubus do alto até desceram um pouco para tentar proteger o colega que havia realizado a tarefa. Quando chegaram perto dele, todos começaram a rir. O pacote era apenas um saco plástico vazio. La estava a vizinha flamenguista gritando que a carne do almoço estava salva e tinha caído na rua. O urubu não tinha conseguido levar, pois Zeca tinha deixado o saco aberto para poder descongelar mais rapidinho.

 

A vizinha flamenguista nem quis pegar na carne. Era perigoso pegar em algo tocado por urubu. A dona Zeca não pensou duas vezes:

- Dá-me esta carne, pois só tenho ela para o nosso almoço. Vizinha quer almoçar conosco?

 

A vizinha recusou imediatamente por diversas razões inconscientes. Mas no fundo ela não ia arriscar a comer algo que havia estado em contato com urubu. Por seu lado, dona Zeca não tinha esses preconceitos. Ela acreditava que família vascaína tem muitas proteções. Até seus netos são vascainos. Nada a temer. Depois daquele dia não arriscou mais deixar carne descongelando no terraço da casa. Deixa sobre a pia e tranca toda a casa. Vai que...

 

Urubu nunca vai ter sorte em casa de vascaínos. Essa é a grande verdade. Assim todos naquele morro quando avistam urubus trancam as casas. E os terraços foram todos fechados. Os urubus desde aquele dia estão voando para o Rio de Janeiro, mais especificamente para o lugar chamado “Ninho dos Urubus”. Já sofreu incêndio, mas é o lugar mais seguro que existe na cidade.

 

 

Edebrande Cavalieri
Enviado por Edebrande Cavalieri em 24/04/2023
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