Edebrande Cavalieri
A escrita é a salvação do espírito, da alma e do corpo.
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Do cheiro à dor

Bem que poderia ser um novo poema, mesmo sangrando o poeta consegue elevar-se do chão duro do sofrimento. O caminho natural decorrente daquele perfume bem que poderia ser o prazer e a paz. Bem que poderia ser a vida que pulsa em nossas veias. Mas a dor indesejável rompeu sua inércia para entranhar-se no corpo, no coração, na alma, no espírito. Dói tudo. Sentir dor em tudo, depois de uma longa vida vivida, é algo inusitado e até impensável.

E ainda mais triste é a dor que não se sente a sós, mas a dois. Essa dor parece insuportável. É assassina. Mata. A dor a dois é a contradição do amor. Esse cria o tempo todo, em cada segundo. A dor a dois nos devora, nos consome, nos torna reféns das sombras eternas. E nessas profundezas, o espírito clama “De profundis clamavi ad te, Domine”. Mas parece que Ele não escuta. Por que tão cruel, Deus meu? A irrupção do espírito não é suficiente para manter a vela acesa. A dor a dois tem cheiro diabólico, de trevas. Cheira enxofre.

 

Se em minhas orações o meu pedido foi atendido, o que irrompeu no caminho para que aquela prece se desfizesse? Era para ser um projeto final de existência, a ser percorrido a dois. Só isso. Não eram grandes coisas a conquistar. Tudo estava dado, conquistado. Era apenas para consolidar um caminho com alguém que se dispusesse a compartilhar esses últimos tempos. Mesmo que fosse uma morte a dois, era previsível e aceitável. Mas sofrer a dois, com a espada enfiada no peito sangrando...não. Isso não estava nas intenções daquelas orações.

 

O perfume emanava com tanta força no alvorecer que me fez sonhar. Chegando às nuvens da paz, a espera mais esperada, da amada. O perfume revitalizou cada segundo daquela semana estressante. O perfume fez sonhar, fez gozar. O amor que nasce do perfume tem detalhes indescritíveis. Mas esse era muito forte. Inalar esse perfume ao amanhecer é como se nos transportássemos para o nirvana, para o paraíso. Pensei até que Deus teria posto em meu colchão enquanto dormia esse entorpecente divino. Inalava em cada respiração, em cada sonho mais ofegante. O perfume penetrando em cada parte de mim, parecia que penetrava em cada canto do meu espírito.

 

Como seria a vida perfumada dessas coisas que apenas Deus é capaz de nos conceder! Eu não havia pedido a Deus perfume, mas ele me trouxe enquanto eu dormia. Enquanto eu dormia era como se Ele extraísse uma nova costela e no silêncio da madrugada fizesse uma nova companheira. Aquele perfume era tudo, a plenitude da vida, da paz. Aquele perfume era aquele amor que tinha sido pedido em prece. Mas, num piscar de olhos, aquele perfume evaporou-se. Ou teria sido evaporado?

 

Aquele perfume não podia ter desaparecido assim em tão pouco tempo! Onde estava o fixador daquele perfume para marcar nossos corpos, nossas vidas, nossos espíritos? Perfume sem fixador não serve para muito tempo. Evapora. Mas o perfume divino jamais poderia evaporar assim!

 

A prece e o perfume foram os momentos que arrebataram meu espírito. Eles me elevaram do chão duro da dor e da solidão e me deram a certeza da espera, a certeza da fidelidade divina. Mas como explicar a chegada da dor do fim? Será que também a prece deveria ser feita a dois? Talvez aqui esteja a resposta. No perfume o travesseiro trazia em símbolo a presença, mas na prece ainda não havia quem pudesse ser. Pede-se na prece e deixa-se que Deus resolva atender ou não.

 

A prece é traiçoeira. Ela dissimula e nos engana. O Deus da prece é dissimulador, simulacro, representação de nossos desejos socioeconômicos. Somos mais hereges ao rezar do que ao sonhar. Somos mais hereges de joelhos prostrados, que enfrentando a vida como ela é. É mais verdadeiro o perfume que a prece. Os hereges são muito devotos.

 

Fui acreditar piamente na prece achando que tudo estava resolvido, como se Deus tivesse feito um milagre. O que Ele havia enviado não era o absoluto, definitivo, tudo resolvido. E então as novas tarefas para o projeto de fim existencial. É mais fácil projetar constituir uma família que projetar a reta final da existência. Essa me parece ser a grande verdade.

 

Quando se projeta constituir família, a dois se projeta e se constrói um castelo com paredes largas e bases fortes. Quando a separação rompe esse projeto, lança a existência num lamaçal e terreno movediço. Reconstruir outro caminho, com perfume, de nada valem as preces, senão o movimento de novos dois iniciarem a caminhada. Não há como trazer mais caminhantes nessa tarefa. Projetos desfeitos de cunho familiar não mais serão recompostos. Inútil tentativa de rearranjar uma nova família.

 

O caminho que resta é o resto do caminho! Só isso.

 

Edebrande Cavalieri
Enviado por Edebrande Cavalieri em 03/05/2023
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