A Diocese de Colatina está se mobilizando para esse grande momento de vida para o povo da Bacia do Rio Doce, nossa casa comum, com vários eventos culminando com a grande celebração em Regência, Linhares, no dia 18 de junho. Na verdade, o início dessa Romaria se dá em 2015 na Diocese de Mariana (MG) após o rompimento da barragem de rejeitos de minério da empresa Samarco. Junto de Mariana vieram outras Dioceses da Bacia do Rio Doce como Caraginga, Governador Valadares, Itabira-Coronel Fabriciano, Guanhães e agora chega ao Espírito Santo.
Como filho dessa terra jamais poderia renegá-la em minhas memórias e minha fé. Quero deixar aqui alguns elementos dessa memória tão querida por mim, tão amada. As pessoas da minha idade terão oportunidade de reviver um tempo diferente do atual, talvez bastante inconsequente em relação às ações executadas por nossos pais. Hoje com certeza terei que pedir perdão por aqueles que já se foram desse mundo e deixaram suas pegadas nas matas derrubadas e nos rios e riachos secos.
Como esquecer a ganância para ganhar dinheiro vendendo dormentes para a Companhia Vale do Rio Doce que estava construindo a estrada de ferro Vitória-Minas? Serrarias espalhadas por todos os lados, distritos habitados por trabalhadores da madeira. Quando não eram as serrarias a cortar os grandes troncos de madeira de lei, eram os pequenos trabalhadores com seus grupiões que era uma espécie de serra usada por dois homens. Motosserra? Ainda não havia. Era na base do machado mesmo. Muitas vezes um homem ficava quase um dia para derrubar uma grande árvore. E assim fomos devastando as terras dessa região. Era preciso derrubar rapidamente para vender a madeira e plantar café.
As dores das crianças como eu eram muitas. A mata tinha seu encanto. Quando o fogo chegava era preciso correr para apagar o incêndio. A noite escura projetava uma mata cheia de pequenos focos de incêndio. Muita tristeza, pois o fogo representava o fim da vida, a morte das araras, dos papagaios, das aves e animais. Como era triste ver a carcaça de um tatu queimado pelo fogo! Como era triste ver filhotes de araras despencando do alto de uma árvore ao seu derrubada!
Minha primeira escola foi reconhecer árvores como jequitibá, vinhático, sapucaia, peroba, brejaúba, farinheira, jacarandá, farinha seca, ipês...de longe ao avistar a mata do alto ficávamos identificando os diversos tipos de árvores, especialmente aquelas que mais se destacavam. Junto das árvores era hora de aprender a reconhecer as aves e animais como onça parda, onça pintada, porco do mato, antas, macacos, macucos, inhambus, gaviões, cobras de todas as espécies e as mais temidas como a preguiçosa, a coral e a surucucu. Tínhamos um museu vivo na natureza.
A vida nessa região não era em todo triste assim. A lembrança me conduz aos tempos das enchentes do Rio Doce. No momento em que as águas baixavam, era o momento que via meu pai montando num cavalo, com um saco de lona e uma peneira, dizendo que ia pegar peixes. Nas margens do Rio Doce os peixes lá estavam prisioneiros sem ter para onde escapar. Era a hora que os moradores da região vinham com seus cavalos e recolhiam esses peixes, levando para suas casas. Eram limpos e salgados. Depois secos no sol e guardados para muito tempo. Era o nosso bacalhau. Como esquecer tucunarés, grumatãs, acará, corvina, lambari, piaba, traíra, piau, cascudo! Era muita fartura. Terra abençoada!
Como meus pais eram meeiros nessas terras, era comum ficar pouco tempo em cada lugar. Aprendi a não me apegar nos novos lugares, com seus desafios. Chorava quando tinha que fazer mudança, mas não havia alternativa. Quando o trabalho acaba, a vida do meeiro fica comprometida. Era preciso arrumar mais matas para derrubar. Era assim que meus pais conseguiam alimento para os filhos. Quando chegava a hora de colher o café, dependendo da safra, era possível não ser suficiente para pagar a dívida com o dono do comércio que nos vendia a fiado. Era triste ver meu pai chegando depois da venda do café e dizer para a mamãe: não sobrou um tostão.
Outra experiência muito significativa nessas mudanças era ver meu pai buscando um lugar onde pudesse achar nascente de água boa. Não era difícil. Fazendo um buraco na terra com um metro e pouco de profundidade era a hora de ver os olhos d’água brotando cristalina. Em pouco minutos o poço estava cheio de água da melhor qualidade, para uso doméstico e para beber.
Esse cenário todo sofreu as mais absurdas transformações. Recentemente andei dando umas voltas por aquelas terras, e voltei triste. Aqueles rios onde encontrava peixe secaram. As matas acabaram. As pessoas fugiram para a cidade. Pasto e bois habitando aquelas terras. O Rio Doce que é o ente mais visível sofre em seu leito de morte. A tragédia de Mariana que se configura como crime tornou-se o símbolo dessa história de devastação e destruição.
A Romaria das Águas e das Terras é realizada por todas as dioceses da Bacia do Rio Doce. Trata-se de uma grande celebração cujo templo sagrado é a casa comum. Como peregrinos caminhamos nessas terras buscando o alimento e a vida. Fomos expulsos. Agora retornamos como peregrinos numa grande marcha transformando a mística e a espiritualidade em gestos e compromissos concretos em favor da vida, da casa comum. A Romaria das Águas e da Terra é uma celebração que se constitui como contribuição profética, como grito profético em favor da vida, da existência humana e do nosso planeta. As águas gritaram e gritam! As terras gritaram e gritam! As aves e animais gritaram e gritam! O grito deles não pode nos encontrar de braços cruzados em nossa indiferença.
A Romaria das Águas e da Terra se constitui verdadeiramente como sacramento da caminhada. Não é um ato religioso de cunho individual que se faz num templo. A Romaria deve convocar a todos, independentemente de sua religião, de sua Diocese apesar de ser coordenada pela Diocese de Colatina. Convoca os povos da Bacia do Rio Doce para essa celebração abraçados a sua terra e às suas águas.
Circulou pelas redes sociais uma imagem linda de Dom Lauro Sérgio Versiani Barbosa rezando na foz do Rio Doce, em Regência, local que recebeu de forma trágica a lama dos rejeitos de minério. Concluo essa reflexão com as palavras de Dom Lauro, ditas nessa ocasião: “Essa situação toda mostrou o que faz o pecado concretamente na sociedade: a destruição da criação de Deus, da harmonia, das relações fraternas, da relação com a natureza e com o meio ambiente”. E mais ainda: “É preciso agir com os pés na terra e ter um olhar no céu”.
Nessa peregrinação penitencial e profética iremos nos encontrar no dia 18 de junho em Regência, Linhares, depois de vários momentos celebrativos e reflexivos ocorridos em Baixo Guandu, Colatina e Linhares. Nesse dia 18 de junho, considerado o grande dia, a romaria comportará celebração eucarística, caminhada pela foz do Rio Doce, colocação da cruz, exposições, vivência e apresentações culturais. Dessa forma a memória do passado e as dores do presente são apresentadas no altar da misericórdia de Deus, nesse olhar para os céus, mas com os pés fincados na terra, mesmo que ainda tenha muita lama.
(Publicado originalmene no site www.aves.org.br no dia 22 de maio de 2023)